primeira frase em absoluto que eu li de Natalia Ginzburg foi: “Eu atirei nos olhos dele”. Eu tinha doze anos e estava na escola, durante a aula de literatura italiana. Natalia não estava no programa daquele ano, mas às vezes eu folheava as páginas do livro de texto de literatura que continha extratos de contos e romances, e aí estava: a escritora que atirava nos olhos dos homens. 

No primeiro marido dela na vida real, Leone Ginzburg (do qual ela manteve o sobrenome a vida inteira: o sobrenome de solteira dela era Levi), ela nunca atirou: para matá-lo foram suficientes os nazistas, em 1944. 

Natalia era judia, assim como o primeiro marido, e ambos vinham de famílias burguesas e faziam parte daquela intellighenzia de Turim, liderada por Giulio Einaudi, que no futuro iria fundar a editora Einaudi, até hoje uma das mais influentes na Itália. 

Quando pensamos na literatura italiana e, mais especificamente, na tradição literária feminina da Itália, notamos que não há autoras voltadas à sátira social como Jane Austen; precursoras do romance gótico como Emily Bronte; ou criadoras de monstros imortais como Mary Shelley – mas Natalia está no grupo fundamental de escritoras que, durante e depois da Segunda Guerra, contribuíram para reconstruir uma identidade literária e cultural italiana, a refletir uma imagem apavorante, porém fiel, de um País que estava de rastos. 

Anna Bella Geiger, Cais & Ocean e Bereshith com Flor (2013). Fotografia de Jaime Acioli.

Natalia, que foi obrigada a fugir do regime no meio de infinitas madrugadas, com as suas crianças, e depois exilada no Abruzzo – uma região do Sul da Itália, desconhecida para ela – foi que nem a sua escrita: real e precisa ao ponto de parecer cruel. Há algo poético, hiperrealista porém cruel quando ela descreve as suas personagens: uma mãe jovem e viúva que não encontra mais sentido nenhum na sua vida senão o amor irracional por um homem que a abandonará; uma menina do interior de família humilde que engravida do filho do médico da comunidade; uma esposa que atira nos olhos do próprio esposo; mesmo assim, a crueldade nunca é gratuita. Natalia não julga, nunca.

Tímida e reservada quase quanto os seus melhores amigos Italo Calvino e Cesare Pavese, Natalia joga na nossa cara a realidade de uma Itália formada por tantas pequenas histórias que mesmo nas suas individualidades são esmagadas pelo peso da História, e ela faz isso sem perder-se em pormenores, quase declarando: “Eis os fatos, agora tragam vocês as suas conclusões”. Natalia foi uma das primeiras autoras mulheres de poder no mundo editorial italiano, e todavia a sua forma de relacionar-se ao feminino era bastante complexa: ela amava usar o cabelo muito curto e usar trajes masculinos, e seus modelos literários eram quase todos homens. Isso é compreensível, se pararmos para pensar no contexto de uma época em que ainda não existia uma narração feminista e conscientizada que permitia às mulheres de serem pessoas com muitas facetas, e para elas emergirem às vezes era necessário que elas renunciassem a pelo menos uma parte da própria feminilidade.

Natalia resta, de qualquer forma, uma mulher necessária no panorama cultural italiano (e internacional), porque o seu gênio feminino nos trouxe, além dos ideais antifascistas e da contribuição na reconstrução cultural de um país inteiro, a beleza crua de uma literatura que deve sempre “falar a verdade”. 

Anna Bella Geiger, Burocracia (2012). Fotografia de Fernando Costa.

Sara Zampieri, italiana e milanesa, é professora de italiano e tradutora de português, ama a literatura e as línguas estrangeiras. Os seus clássicos literários favoritos são os russos e os latino-americanos. É colaboradora de literatura da Philos.


[1] GINZBURG, Natalia. È stato così. Torino: Einaudi (1947).
[2] PETRIGNANI, Sandra. La corsara. Vicenza: Neri Pozza Editore (2018).


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Publicado por:Philos

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