“Dê ao olho “uma aparência mais decidida de janela aberta ao infinito”
Charles Baudelaire

“Quem olha de fora, através de uma janela aberta, não vê jamais tantas coisas quanto quem olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante do que uma janela iluminada por uma vela. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se passa atrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.”

No Rio, na antiga São Sebastião dos nossos devaneios, a Letícia e a Martha abriram a linda livraria “a janela” e sonho que estive na calçada da Rua Maria Angélica, no Jardim Botânico cortando, rasgando e colando as imagens das agendas do Jorginho, editor da revista Philos. Sentados frente a frente, Jorginho e eu nos apropriamos com ousadia de duas mesas na calçada para espalhar o material de arte que carregamos conosco. Um tempo emprestado ao tempo. As correntes de ar advinham dos pontos luminosos da cidade, da Lagoa, do Parque Lage, do Jardim Botânico, e confluíam sobre nós naquela tarde. Ambas a Letícia e a Martha nos acolhiam com imenso carinho. A Martha nos guiou pela escada giratória e mirabolante, replicando um tronco tortuoso de árvore, e chegamos ao segundo andar da livraria. Os segredos bem guardados estavam ali, nas belíssimas novelas gráficas japonesas. Numa outra estante, em outra dimensão, o livro de contos de Stefan Zweig. O seu suicídio é posto em dúvida, a sua voz me interpela, e ao tocar na sua obra recuso a versão de que um autor como ele tomou a própria vida. A cada página de Zweiger, penso em seu destino, na fuga para o Brasil, na tragédia pessoal, no seu ensaio sobre falar várias línguas.

O tempo colocou-nos num liquidificador e nos processou como ingredientes de uma receita de laboratório de tal modo que um século foi engolido no copo de vidro, de 1920 saltamos para 2020. Pelo excesso de realidade, o surrealismo volta a superfície. Neste vilarejo perto da fronteira com o Canadá, a tinturista conta que na vizinha Montreal as pessoas cometem loucuras e colorem os cabelos de matizes inusitadas e chocantes, enquanto me aplica uma mistura de morango e amônia que arde o couro cabeludo e os anos, para transformar grisalho, em cor, dor, em alguma forma de beleza. Temo que se empolgue na mistura. Os espelhos pecam pelas assombrações. Penso na Mariana Enriquez, sua escrita sombria e gótica e o exemplar do romance que aguardo chegar pelo correio. As montanhas ao redor comportam-se como seres superiores, concentrando a gente no vale do qual se abre o céu tal e qual uma janela. Salem não está tão longe tampouco. Os sonhos se alternam com a passagem da realidade na face estampada das nuvens, no luar incandescente por detrás dos galhos dos pinheiros que crescem sem parar como na fábula “João e o Pé de Feijão” que fascina desde a infância.

Apoiados sobre o umbral da “Janela”, o Jorginho e eu não sabíamos se folheávamos os livros ou nos sentávamos para desenhá-los ou escrevê-los enquanto o bolo de brigadeiro e pães de queijo enfeitavam as mesas adjacentes, animadas pelas conversas de pessoas que iam e vinham. Aquele dia antecedeu a inauguração oficial da loja com a presença do Ruy Castro, recém lançando “Rio, uma Metrópole a Beira Mar”, não um balneário, como chamam por aí, mas o Rio como cidade imaginada e fantasmagórica, o Rio metrópole dos anos 20, tão bem descrito na voz do João do Rio. É possível que aquele Rio haja cometido suicídio para fazer nascer o Rio de agora, um Rio absolutamente desconhecido da São Sebastião. Entretanto, a Martha e a Letícia logram em ressuscitar o passado citadino e recriam o ambiente do Rio de 1920, o Rio das livrarias, saraus, jornais, uma cultura que se descobria naquela capital de um Brasil juvenil, um país em seu eterno Bildungsroman. No início do século XX, a gripe espanhola se espalhou pela cidade em ondas como se viesse do mar, arrasou com um terço da população, inclusive o presidente Rodrigues Alves e reverencio os antepassados sobreviventes; no intervalo entre a gripe espanhola e a pandemia contemporânea, Camus escreveu “A Peste”, ficamos entre ser nada ou sermos absurdos, entre um tempo e esse. Num flashback, a pandemia trancou “a janela” e fez dela moldura de uma espera.

Desta casa em Stowe, Vermont, sinto o privilégio de janelas e vistas para os montes amaciados por geleiras milenares e um oceano celestial. Da sala, avisto um antigo cemitério, com lápides organizadas, ossos resignados à tranquilidade concedida na terra descampada e um sinal que pede silêncio para que as almas não sejam perturbadas. As janelas dos fundos da casa se voltam para o parque e a Mayo Farm com suas plantações de milho. As janelas laterais dialogam com as janelas da igreja. Observo-as despudoramente, com intenção de arrancar significados, explicações. Entrei na cidade vazia. O pastor abre e fecha a igreja uma vez por dia para ativar os sinos e estabelecer horário e ordem.

Antes de deixar o Rio, passei uma última vez em frente à “Janela”. No edifício residencial ao alto, morou Sonia Coutinho, a escritora que fotografava os corredores verdes povoados de biguás. A Sonia era meio mística, meio bruxa de Salem. Frequentávamos o café do Parque Lage, conversávamos, ela revelando-se em detalhes numa corrida contra o tempo. Foi numa sexta feira, às quatro da tarde quando a Sonia e eu trocamos as nossas mensagens derradeiras, a morte tendo vindo buscá-la duas horas após, o nosso café marcado mudava de prateleira, a Sonia havendo tomado carona com as aves que fotografava, levando “Uma Certa Felicidade”, “O Último Verão de Copacabana”, “Os Seios de Pandora”, “Os Venenos de Lucrécia”, “Jogo de Ifá” os seus livros num baú para o Éden fora do tempo e do espaço.

Hoje leio que a “Janela” reabrirá. Sei que a eternidade é feita de livros e a esperança reacende a reminiscência da rua arborizada, do encanto das colagens, dos recortes de ontem que aderem ao papel e redimensionam o ponto de vista. Dos Sonetos para Orfeu, Rilke restabelece a fé em canais abertos, em imagens diárias por ele experimentadas: “o sono dela era tudo. As árvores que sempre adorei, as distâncias que nós quase podíamos tocar, a pastagem que tanto sentia”, complementados pelos versos do poeta sevilhano Antonio Machado: “o que o poeta procura não é o fundamental eu mas o profundo você” nutrindo a mensagem de Lorca ao recitar que “a rosa não estava buscando escuridão ou ciência, na margem da carne e do sonho, buscava outra coisa.” Esta outra coisa, este buraco negro ou luminoso, para dentro e fora da “Janela”, o fascínio.


Kátia Bandeira de Mello-Gerlach é natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova Iorque, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Vila-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos. Autora, dentre outros, dos livros Colisões Bestiais Particula(res) e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas, publicados pela Confraria do Vento.

A fotografia que acompanha o texto é de autoria dos nossos colunistas e parceiros, Magda Fernandes & José Domingos, da Imagerie – Casa de Imagens, de Portugal.

Publicado por:Philos

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