a mulher sente as mãos úmidas, como pequenos animais viscosos que não a obedecem. “por ordem do juiz”. “por favor me acompanhe”. a mulher foi retirada do plenário do Júri, por ordem do juiz, por estar mexendo no celular. tinha sido avisada. mas é desobediente, sempre foi, e não imaginou que haveria fiscais. que absurda falta do que fazer, fiscalizar se a plateia mexe ou não no bendito aparelho, ou lê um livro, ou jornais. a mulher sai do fórum um pouco tonta, não identifica de onde vem a voz que diz seu nome. é um ex-professor que, muito simpático, pergunta por seus textos. a mulher diz, orgulhosa, que foram publicados em revista três – veja bem, três – deles, e que pretende mandar uns originais para publicação. já mandou para duas editoras, mas não obteve resposta. despedem-se, a mulher segue, as mãos ainda molhadas de pavor. a mulher está apavorada, não por ter sido retirada do plenário do júri, mas por esse primeiro confronto com a autoridade instituída. sempre foi uma rebelde e nunca sofrera maiores consequências. mas ali ela viu que o mundo que tinha escolhido para navegar era de outra sorte. por ordem do juiz, qualquer coisa. por ordem do juiz, não importa. a mulher segue até a Praça Raul Soares e é quase atropelada no cruzamento, distraída que está pensando nos protocolos e nas capas pretas dos atores daquele teatro, o júri. a mulher é péssima com protocolos. sua tardia escolha de profissão talvez esteja fadada ao insucesso. nunca quis, verdadeiramente, uma profissão. queria escrever, só sabe escrever, mais nada. escreve compulsivamente, mesmo quando sente que não muito com sangue e vísceras o que dizer. escreve e vai em voz alta lendo para si mesma, apaixonada pelo som da própria voz. a mulher é uma narcisista. a mulher é uma narcisista apavorada, que tem medo do mundo que escolheu para percorrer, que tem medo do fantasma da criança dourada que foi, que tem medo dos homens (e os adora), que tem medo.
a mulher se basta em seu medo, o coração acelerado e a vista alerta, como um cão ameaçado. a mulher fareja inimigos imaginários, sendo ela mesma seu pior algoz. a mulher se sabota de uma forma perversa, com os requintes todos mais cruéis. e ela sabe disso, e observa de fora da cena e 3, 2, 1, voilà, a mulher se atira na lama novamente, debruçada com esmero, bebe, sorve a água imunda a grandes goles. suja embaixo das unhas ao arranhar o fundo da poça em que chafurda como uma piara de porcos, sôfrega, bêbada da vertigem da queda. ah, como a mulher cai, e com que graça, esse ballet tão sabido e bem executado desde sempre, ou quase. a mulher tem a sede do infortúnio, de atrair para si o vórtice e o naufrágio – que sentido faria o barco de papel que tem no antebraço direito, se não navegasse vórtices?
a mulher que tem o barco de papel arranhado pelas garras de um gato demoníaco, um prenúncio de “não bastará” que tem as costelas marcadas por pequeninas constelações auto infligidas e manchas de sol, que adora, apesar de seu pendor para noturnos, que tem os calcanhares rachados por ter andado a vida descalça, tem a coragem dos apavorados. daí o medo. o não-medo. a fome. os olhos de não caber. a mulher, ela é bastante.


Laura Torres (Belo Horizonte, 1981). É escritora de gaveta e revisa textos alheios.

Publicado por:Philos

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