Em sua longa carreira o delegado Pilatos já tinha visto de tudo. Filho matar o pai? Comum. O contrário, pai matar o filho, não era tão corriqueiro, mas acontecia. Entretanto, esse enredo inusitado jamais havia visto. Olhou com certa curiosidade para o acusado à sua frente, Abraão da Silva, 133 anos (certamente houve algum erro de digitação nesse registro), casado, aposentado, residente na comunidade de Nova Harã, sem antecedentes criminais.
— O que o levou a tentar matar seu próprio filho, vovô?
— Era uma prova de fé ao meu Senhor. Ele me ordenou “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.”
É doido mesmo, não há dúvidas. Basta lavrar a ocorrência e chamar o psiquiatra para atestar a insanidade mental. Quanto ao filho, Isaque da Silva, 33 anos, autônomo, residente à mesma comunidade já citada, é preciso encaminhar para o Serviço de Assistência Social. Provavelmente vai ter que comparecer a algumas consultas com um psicólogo. O rapaz passou um perrengue difícil de superar. Não fosse a patrulha da Polícia Militar passar na hora certa teria sido morto pelo próprio pai. Do mandante do crime, o tal “Senhor” de Abraão, não havia nenhuma informação que comprovasse sua existência. Nada. Nenhum documento, cadastro ou perfil em rede social. Nem ao menos um retrato falado foi possível elaborar pois o próprio executor do crime tinha dificuldades em descrevê-lo. Ao que tudo indica não o tinha visto, apenas escutado sua voz. Aliás, que “Senhor” é esse que pede para um pai matar o próprio filho como prova de fé? Deve ser coisa de magia negra.
– Meu senhor, vou lhe expor os fatos. O senhor está enrascado até o pescoço. Foi pego em flagrante tentativa de homicídio com o agravante de que a vítima era seu próprio filho. Seu filho único! O senhor premeditou o crime levando-o até o topo da comunidade e o amarrando. Para agravar, fez isso tudo induzido por um motivo fútil: uma tal “prova de fé” ditada por uma “voz” dentro da sua cabeça. Consegue perceber como qualquer um o julgaria um louco perigoso? No entanto, você não me parece um sujeito ruim. O senhor é um homem idoso e eu realmente quero te aliviar e te diagnosticar como desequilibrado mental para você ir para uma Colônia Penal. Caso contrário, tu vais amargar o resto da vida na penitenciária no meio de um monte de bandidos de verdade.
— Eu não sou maluco! — exaltou-se Abraão — Fiz somente o que me ordenou meu Senhor!
Era um caso perdido. Melhor chamar logo o repórter, que esse é um prato cheio. O sacana iria ficar devendo uma a Pilatos. Podia ver a manchete: “Lunático ouve vozes e tenta matar o próprio filho!” Primeira página, com certeza. Se imaginasse que sairia no jornal teria feito a barba. Se bobear aparece até o repórter da TV por aqui.
Bom, não há muito o que ser feito. Melhor chamar logo o escrivão e registrar a ocorrência. Em suma, foi relatado pelo sargento Longino, do 33° Batalhão, que às 21 horas do dia corrente, no alto da comunidade Monte Moriá, o indivíduo identificado como Abraão da Silva foi surpreendido em flagrante delito tentando assassinar seu próprio filho, Isaque da Silva, com um cutelo (anexado nos autos do processo). A vítima encontrava-se imobilizada por cordas. O agressor foi rendido e preso pelos policiais enquanto a vítima era socorrida pelo SAMU em estado de choque. Isso é o suficiente para descrever o cenário, depois o escrivão enche de abobrinhas para dar uma engordada no texto.
Pilatos estava intrigado com a postura do acusado. O ancião parecia convicto do que fizera e nem um pouco arrependido. Uma curiosidade mórbida acometia o delegado.
— E se você recusasse? O que aconteceria?
Pela primeira vez Abraão pareceu confuso. Jamais havia lhe passado pela cabeça descumprir uma ordem do seu senhor.
— Não sei… — balbuciou — Acho que seria castigado…
— Castigado você será pela justiça dos homens! — Pilatos deu um soco na mesa, perdendo a paciência — Levem esse demente daqui e só me chamem quando chegar o repórter!
Sozinho na sala, recostou-se na cadeira e jogou os pés por cima da escrivaninha. O plantão ainda estava na metade, tinha uma madrugada inteira pela frente. Acendeu um cigarro, tragou a fumaça e fechou os olhos. Fizera o que era possível para aliviar a barra do velhinho. Lavava suas mãos.
Carlos Barth é engenheiro de profissão, escreve nas horas de folga. Escritor na Revista Subjetiva com trabalhos publicados nas revistas Philos, Subversa e Literalivre.