Joaquim Maria Machado de Assis… mulato, neto de escravos alforriados; filho de um pintor de paredes igualmente mulato e de uma lavadeira açoriana, morta quando Machado tinha apenas dez anos de idade. Criado por uma madrasta incomum, ficou órfão de pai muito jovem; já havia perdido a única irmã, um ano mais nova do que ele, cinco anos antes. Era epilético, gago e, desnecessário dizer, pobre. Com essa origem de perdas dolorosas e de singularidades, quem haveria de imaginar que estava sendo gestada nele a verve literária de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos?
Aclamado como o expoente máximo de nossa literatura, e reconhecido como o introdutor do Realismo no Brasil, Machado de Assis foi o fundador e o primeiro presidente (unanimemente eleito) da Academia Brasileira de Letras. Poliglota e autodidata, foi bem sucedido em quase todos os gêneros literários de que dispomos e pelos quais enveredou-se; em outras palavras, foi romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor, folhetinista e contista, além de crítico literário. Contudo, não atuou somente na literatura; como jornalista, cobriu acontecimentos importantes da sociedade de sua época, em transição entre o Império e a República, e plasmou costumes e tradições em jornais como o Diário do Rio de Janeiro. Em seus momentos de ócio, dedicava-se ao xadrez; e foi um exímio e premiado enxadrista.
Mais de cem anos depois de seu falecimento, ele continua a ser um marco em nossas letras e um exemplo de persistência, determinação e vitória. A literatura brasileira conheceu e conhece ícones do quilate de Lygia Fagundes Telles, Moreira Campos, Dinah Silveira de Queiroz, Mário de Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado, Lygia Bojunga, João Cabral de Melo Neto, Marina Colasanti, Domingos Olímpio, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Hilda Hilst, Gonçalves Dias, Cora Coralina, Mário de Andrade, Rachel de Queiroz, Ariano Suassuna, Adélia Prado, Capistrano de Abreu, Ana Maria Machado, Juvenal Galeno, Carolina de Jesus, Guimarães Rosa, Zélia Gattai, Carlos Drummond de Andrade, Lya Luft, Nelson Rodrigues, Pagu e Mário Quintana, somente para citar alguns dos mais conhecidos. No entanto, quando se trata de superação, de auto superação, um nome vem a lume: Machado de Assis – sem a menor intenção de se cometer injustiça para com os demais.
Tamanho reconhecimento não veio em vão: Machado sempre buscou alimentar sua veia literária com as boas amizades que mantinha no meio fecundo dos literatas em formação. Entre esses, podemos citar alguns que foram contemporâneos seus: Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Castro Alves, José de Alencar, José Veríssimo, Coelho Neto e Euclides da Cunha. Desde muito jovem, mesmo sem suficientes credenciais para isso, Machado inseriu-se no mundo das letras ao participar de tertúlias e saraus, e ao escrever e publicar seus primeiros trabalhos. Não tinha formação acadêmica; não teve meios econômicos para frequentar uma universidade; a educação formal que tivera veio-lhe através das escolas públicas que frequentou; mas sua inteligência, aliada à sua ambição de prosperar e à sua competência laboral, o fizeram galgar postos no serviço público e na imprensa.
Foi em meio a seus amigos, a maioria formada por jovens escritores como os supracitados, que Machado conheceu Carolina Xavier, cinco anos mais velha do que ele, e irmã do já enfermo Faustino Xavier de Novaes, de quem ela viera cuidar. Culta e generosa, a nobre portuguesa, nascida no Porto, enxergou, naquele que viria a ser o amor de sua vida, o homem por trás das letras, o gênio enclausurado em um biótipo condenado às fímbrias da sociedade. Como Machado carecia de polimento acadêmico, foi Carolina quem lhe apresentou os clássicos da literatura portuguesa e de outras línguas. Além disso, corrigia seus textos e, muito provavelmente, influenciou sua escrita e o direcionamento de sua carreira literária. Estiveram casados por trinta e cinco anos, mas não tiveram filhos. Foi um casamento feliz até que ela faleceu, fato que o abalou profundamente e encurtou seus dias, quando ele passou a viver afogado em depressão e nostalgia cíclicas.
Contudo, além de Carolina, de sua “Carola”, como ele a chamava na intimidade do lar, muitas foram as mulheres que lhe marcaram a vida e a nossa, por extensão: Helenas, Iaiás Garcia, Americanas e Ocidentais, Almas agradecidas… mulheres múltiplas que não temiam Brincar com fogo. Todas perfeitamente delineadas com capricho e desprovidas de desencantos pela Mão e a luva desse narrador nato e inquieto, em Papéis avulsos ou Contos fluminenses, em Poesias completas, enfim… várias histórias, Histórias da meia-noite, Histórias sem data, em Páginas recolhidas.
Mesmo deprimido, Machado continuou escrevendo, dentro de suas possibilidades, até que uma úlcera bucal cancerosa e letal o levou aos sessenta e nove anos, com muita dor e sofrimento. Foi amplamente pranteado e homenageado no país e no exterior, fato que poucos literatas de sua época conseguiram. De seu lastro literário, legou-nos, dentre outros trabalhos: nove peças teatrais e nove romances, além de mais de seiscentas crônicas e cinco coletâneas de poemas e sonetos.
Mais de um século após sua saída de cena, Machado de Assis continua tão presente no cenário literário brasileiro como se sua obra, cristalizada e imortalizada, fosse dirigida a uma plateia que não conhece os limites banais impostos pelo tempo. Os valores sociais mudam, as pessoas não; os problemas e conflitos são os mesmos, mas não o verniz que os cobre. Simão Bacamarte, se lhe fosse possível desprender-se das páginas de O Alienista, certamente internaria, na Casa Verde, aqueles que não reconhecem seu criador como a maior estrela na constelação de escritores nossos dos últimos cento e cinquenta anos.
Joaquim Maria Machado de Assis merece o reconhecimento que logrou obter em vida e que se estende desde então. É motivo de orgulho para nós, brasileiros e brasileiras, contarmos entre os nossos grandes com o nome desse que foi um guerreiro, que conheceu a vitória, e que está entre os maiores nomes da Literatura Universal, ao lado de Camões, Cervantes, Shakespeare, Balzac e Dante. Ele foi a prova de que, por menos favorecido socialmente que seja alguém, se lhe sobrar força de vontade para mudar o seu destino, as teias de Cloto, Láquesis e Átropos poderão ajudá-lo nesse sentido. Como ele próprio cunhou em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, e que hoje soa como um oráculo: “Ao vencedor, as batatas”!
Yls Rabelo Câmara (Fortaleza, 1972). Doutora em Filologia Inglesa pela Universidad de Santiago de Compostela.
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