Um dia quando todos os livros forem queimados por serem inúteis, há de haver alguém que ensine esta verdade aos homens.” (Machado de Assis)

Eagleman sentiu-se forçado a descer as escadas do casario apesar da náusea a irritá-lo novamente. Algo no estômago o mareava; suspeitava do coquetel de remédios, vitaminas e minerais somados à refeição matinal, um omelete de banana madura que ele terminava por deixar queimar na frigideira ao distrair-se com a primeira página do jornal. Fazia quinze minutos alguém começara a bater com insistência à porta, interrompendo o silêncio descolado das paredes à guisa dos fantasmas. Aquele silêncio, conhecido de Eagleman, contornava os objetos no frenesi de um ataque poético e mantinha-o vivo. No rádio, a estrepitosa história do livreiro da Causeway Bookstore de Hong Kong surpreendera Eagleman, dividido entre o radialista e figurantes vociferando em mandarim, transportando-o com o seu omelete servido sobre o prato ao beco da Causeway de propriedade de Liu Gui.

Explicava-se que, durante anos, Liu Gui vendera alta literatura clandestina, livros sob capas desencontradas, edições com miolos secretos, incluindo os podres do sistema, os nomes das amantes do chefe do partido no continente, memórias amargas de um coronel arrependido, suspenses policiais. Liu enviava exemplares em caixas de bananas Chiquita do Equador para que as autoridades não desconfiassem das suas atividades. Entretanto, como as esperanças são nenhumas, os agentes porventura capturaram Liu, vedaram os seus olhos, embalaram-no no trem destinado ao cárcere. Liu sobreviveu oito meses sem livros até ser liberado para reabrir a antiga livraria sob a condição de entregar a lista de seus leitores. Liu rendeu-se, precisava fumar.

Eagleman descia os degraus a passos lentos, o rádio continuava a emitir ondas noticiosas. As batidas transformadas em pancadas no andar térreo se intensificavam sem abalar o espírito de Eagleman. O casario perdera os outros habitantes ao longo dos anos. Sobrara apenas ele, carente de família desde que a irmã fora sepultada na cova improvisado no quintal, sem padre ou testemunhas. Quinze anos primogênita, Svetlana ocupara o coração de Eagleman como a mãe que o deixara na orfandade. Para substituir a finada, o irmão adotou um bichano iletrado em Kant conquanto metafísico.

A escada do casario desabava na porta que, aberta, ostentava uma avenida de trânsito em mão dupla, um sem número de pedestres e, naquele dia, um exército de garis. O problema capital era abrir a porta condenada pela ferrugem na fechadura. Eagleman girava a chave nervosamente, o que lhe provocava excitação exarcebada pela visão do espectro de alguém do lado oposto da porta, um alguém que insistia em fixar outra chave no sentido contrário ao seu. Eagleman, contendo o gato, na eminência de fuga, entre as pernas, ordenou ao estranho: Stop, Stop, em língua universal. O sujeito não acatou, possivelmente entretido por uma chamada telefônica.

Quando a chave finalmente cedeu, Eagleman abriu porta e boca sem achar palavra que representasse o seu espanto. Ali, à sua frente, em meio a uma baforada de fumo, apoiado sobre um dos pés, encontrava-se um homem asiático franzino, com a alça da bolsa cruzada sobre o peito, uma garrafa de água pendurada no pescoço assim como a máscara médica de respirar e ares de recém chegado. Com a mão, mostrava-lhe um recorte de jornal da foto antiga sob os holofotes da fachada da livraria Causeway, cercada por duas vitrines de patos secos de Pequim pendurados e cartazes de mulheres em biquínis a pedirem silêncio com o dedo em frente aos lábios em bico. Atrás do asiático, dezenas de caixas de bananas equatorianas prontas a serem desembarcadas no saguão do casario. Eagleman perguntava-se o que fazer com o intruso, justo Eagleman cujos olhos eram de águia para os mistérios da vida e de pomba para os grandes infortúnios!

Parecia que estavam a jogar Eagleman em um jogo perigoso, as caixas exalavam o odor de tinta fresca e bananas. O olhar de Liu denunciava uma operação grandiosa e, num relance, o asiático deu as costas a Eagleman, que se agachou para abrir uma das caixas, pegar num livro banido e consultar as primeiras páginas. Não entendia nada daquelas letras. Um lixeiro com vassoura em punho admirava-o à distância e, de vez em quando, sussurrava informações pelo dispositivo apegado a gola do uniforme laranja. O gato metafísico de Eagleman aproveitou a desatenção do dono e fugiu em caça a um rato, seguindo pela faixa de trânsito que cortava a rua ao meio e engolia o corpo do livreiro Liu Gui.


Kátia Bandeira de Mello-Gerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas. Publica no Jornal Rascunho.

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