“O  poeta se esforçava sempre para criar um plano substancial de onde saíam naturalmente os traços cômicos, grotescos e espirituais, porque isto era indispensável.”
“- Você que fala das regras dramáticas.”
“Arrancaram-nos o gozo de rir.”

Contos Fantásticos,  Ernst Hoffman

Propõe o Autor: vamos deixar Apolônio de lado.  Ele retornará à história quando for chegada a sua hora.  Prosseguimos com os leitores que não estiverem dormitando, como o sultão.  Contaremos algo espantoso e insólito.

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A mulher vermelha deu três pancadas no solo desértico e gritou: “rápido”.  Ato contínuo, as palavras tombaram entre os quatro cantos da folha de papel que corresponde a Praça Alfred Jarry.  Letras e transeuntes circulam sem escapatórias, cercados pelas margens. O excitante poder de uma palavra acende fiéis, rebeldes e cães.

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Em seu escritório, está Laurita Morales em progressiva aflição.  Agita-se de uma sombra a outra, dá pancadinhas no chão com a bengala.  Ouviu os latidos dos cãezinhos Zamor amarrados por barbantes pelos novos donos e o comando sussurrado da mulher vermelha, a voz que entrou pela janela, impulsionada pelo vento noroeste, uma ave maria chilreante.  Laurita sabia que urgia decidir-se entre expirar dia desses na terra ou submeter-se a uma viagem cósmica antecipada, conforme propunha o pacote oferecido por Sêrgei Landratov.    Temendo que a senilidade a aturdisse como a Dulac cuja última participação investigatória dera no rebuliço canino, Laurita duelava consigo mesma, armada de dúvidas.

 “Gostaria de contemplar o céu sem lunetas e explorar nebulosas?”, indagou-lhe Landratov ao esvaziar um envelope com albuns de viagens orbitais.  Laurita não costumava se deixar enganar, conhecia o lado secretíssimo das coisas, inclusive a desfaçatez porém Landratov se apresentara no Congresso de Astronomia, tratara do tema “despovoamento interplanetário” e  Laurita, convencida, pegara um de seus cartões de visita.  No tal Congresso, em que fôra no lugar do pobre diabo Apolônio em coma hospitalar, a investigadora aprendera sobre os avanços quânticos e a correspondência intrínseca entre as coisas visíveis e as que não o são.  “As estrelas equivalem às conchas do mar e as naves do futuro estão sendo construídas em forma de búzios para acomodarem passageiros individuais e se lançarem de qualquer plataforma.  A tecnologia permite vôos suaves, sem turbulência.  Os búzios giram em torno dos feixes de luz, é um espetáculo.”

Com asilos, navios e cemitérios apinhados e as covas a preço de várias mortes, o Centro de Pesquisas Espaciais abria novas possibilidades fatais. Seria então que o envio dos velhos para o espaço daria na redução nos negócios dos cruzeiros marítimos e das casas fúnebres, além de outras atividades ligadas aos rituais do fim?  Homens e mulheres de rostos numa combinação de feições que produziam gravidade severa e desmedida solenidade posavam com um capacete sobre o colo e as mãos cruzadas sobre o capacete branco.  As fotos destes idosos presos por cintos de segurança, em trajes de astronautas causavam certo espanto. Reparando nas expressões das sobrancelhas de Laurita Morales, Landratov salientou que “antes de decolar, asseguro-lhe que os passageiros colocam o capacete para não haver impacto.  Não se preocupe!”.  “Curioso…”, comentou Laurita sem no íntimo acreditar na reprodução da dissimetria perfeita da concha para o transporte de milhões de velhos rumo a excursões meteóricas.

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No outro lado da esfera, Dulac ignorava o que se sucedia com Laurita Morales.  Enrolado em uma toalha presa na altura da cintura, Dulac respirava o vapor do banho turco parisiense.  Na sala de repouso, mordia a ponta do cachimbo entre os dentes.  Ao seu redor, os dervishes eram homens em toalhas pelas cinturas, de peitos expostos e com as caras tomadas por bigodes parrudos.  Um massagista aplainara Dulac sobre a pedra e estalara os seus ossos decrépitos. Das inúmeras investigações em sua carreira, era a última que intrigava Dulac e ele não interrompia o pensamento nem durante a massagem. A glândula da curiosidade atormentava o antigo detetive.  Ao tentar localizar o paradeiro do cãozinho Zamor, perdera-se nas pistas de inúmeros sósias e informantes, alguns deles possivelmente disfarçados de turcos na sauna, a observá-lo.  (Ele frequentava aquele ambiente há anos e jamais vira tantos homens ao seu redor.)

 Dulac constatara que o envio de cães para Valparaíso fora providenciado por uma empresa exportadora de animais domésticos mediante encomenda de Madame Petróvska por um único animal.  Misteriosamente, uma quantidade de jaulas fora despachada ao povoado; dezenas de réplicas passaram a roubar os ossos dos vira-latas nos becos locais.  Laurita o chamara alarmada; com as mãos na cabeça e o telefone em viva voz, explicava a azáfama.  Impaciente e cansada,  Laurita chegara a culpá-lo pelo desastre e acusá-lo de senil. Dulac sentira-se enganado pelo fornecedor dos cães idênticos ao primeiro Zamor, o original, do barítono desaparecido Pietro Paolini.  Alguém havia provocado a intriga entre Dulac e Laurita.

Dulac precisava ter uma conversa franca e discutir as suas preocupações com Laurita, listar a ela as suas desconfianças, aconselhar que evitasse armadilhas e pães impregnados de ergot.  Em Lubianka, operava-se um laboratório de clonagem e venenos e os cientistas viajavam às sucursais para desfrutarem da rica biosfera descoberta por Humboldt.  Os camaradas da Sociedade de Cirurgiões russos vagueavam pela antiga rota das galochas, datada desde o princípio do século vinte e muitos deles agora passeavam cães sufocados por barbantes e que respondiam ao chamado de Zamor.

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Landratov e Laurita tiveram um terceiro rendez-vous nas escadarias de pedra do anfiteatro, lugar de improvável escuta por agentes inimigos.  Em um copo de papel para cada, serviram-se do chá de framboesa da garrafa térmica trazida por Landratov.  Na distância, avistava-se a torre da igreja sendo reconstruída.  Os operários brincavam com os sacos de areia, sacos azuis e pesados que subiam e desciam por uma corda.  Uns gritavam de cima, outros gritavam de baixo.  Os sacos cheios ocupavam-nos durante oito horas diárias, com intervalo para almoço.  O padre suspendera os sinos por haver transformado a torre em uma gaiola de quetzals capturados em sua rede de caçar borboletas.  Como outros sons inundavam o povoado, poucos repararam.

“Camarada Laurita”, disse Landratov em tom de sigilo, “Sou um dos primeiros cosmonautas deste novo programa, tenho um arquivo com a sua descrição.  Você passou a vida envolvida em investigações e facilmente terá acesso aos boatos e acusações que nós do Centro Espacial sofremos.  Uns acusam-nos de farsantes, embusteiros.  Portanto, agradeço a sua confiança por ter aceitado o nosso convite, acredito que não se arrependerá se arrependimento fosse possível.  Finado, Jacobo Martinez não se alimenta de abacaxis, como conta a lenda.”

 A peruca de manchas marrons e grisalhas escorregou para um dos lados da cabeça de Laurita e, aliada aos lábios borrados de batom, compunha o retrato da maga. “O importante é tirarmos as medidas do seu corpo para encomendarmos a roupa anti-gravitacional”, avançou Landratov.  Laurita tirou do punho da manga um papelzinho onde anotara todos os seus números e entregou-o a Landratov.  “Camarada Landratov, tenho duas pequenas caixas de madeira com turmalinas incrustadas, presentes que ganhei do meu sócio francês, Monsieur Dulac e desejo levá-las comigo.”

Landratov havia lido um relatório completo sobre Dulac, de autoria de África, casada com Hernandez, marido e mulher proprietários do museu de bonecas.  Nas páginas anotadas a mão, as obsessões de Dulac, fixações carnais e o hábito de consumir fumo turco.  Simulando um sorriso constrangido, típico dos que sabem em excesso, Landratov colocou a tampa na garrafa térmica, bebeu o último gole de chá de framboesas e deu a reunião por encerrada.  Da próxima vez, Laurita experimentaria a indumentária costurada por Rosina, a menos vesga de todas e que noivara o engraxate do Quadrado.

No areal, um grão, um ancião sobressalente; Laurita os remexia com a bengala.  Que sentido fazia uma entidade investir na produção de búzios estelares para auto-destruição em fumaça de titânio, após alcance do alto-espaço em menos de quarenta e oito horas? Se eliminassem os viajantes antes, um número inferior de búzios estelares bastaria.  Gasificados, os idosos se juntariam aos pares de sapatos velhos e furados que a morte colecionava, como na fábula sobre o país onde nunca se morre.  Os embaixadores, assassinos em pactos espirituais, fomentavam a criação de naves que não decolavam e a crença popular nos astros e deuses.

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Recomposta, no interior do seu aposento, Laurita abriu o armário e colocou as duas caixas de afeto sobre a cama.  Ao olhar o lacrimatório, buscou ar do fundo do pulmão para soprar e estilhaçar as pérolas de cristal tombadas dos dutos lacrimais.  Mentira a Landratov.  Dulac não lhe presenteara com objeto algum.  Repetira-lhe que os presentes e os beijos eram tão banais quanto os tangos e que um detetive não falava sequer sobre os próprios pés, portanto silenciara-se sobre calosidades, bolhas e sentimentos.  Com as mãos trementes, Laurita não conteve as lágrimas que fugiram do lacrimatório e inundaram os seus pés.  Os peixes silenciam-se também, mesmo quando despontam das pontas dos dedos e flutuam como prata recém liberta do soalho.  Da obscuridade da caixa de risos, nada saía.  Enquanto a tristeza vitrificava, risos e gargalhadas restavam em indícios, nas rugas em torno dos lábios salientes e repousados um sobre o outro.  Laurita perdera o gozo de rir, preparava-se.

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Sobre os ritos para a morte do futuro: mergulhar no espaço sideral e levar alguns objetos.  A velhota nutria-se do pão quotidiano e escolhia perucas coloridas antes de sair de casa.  Um processo de apoteose aguardava-a.  Eis uma bela visão para se ter da clarabóia do búzio estelar:  no país onde nunca se morre, uma mulher filha do Sol é capaz de arrancar as orelhas e do interior do crânio, tirar uma fita de seda dourada com a qual fará um novelo em torno do mundo.


Kátia Bandeira de Mello-Gerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas.  Publica no Jornal Rascunho.

Publicado por:Philos

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