Ao logo de centenas de anos, conhecemos as histórias sobre e dos povos indígenas brasileiros, contadas/recontadas por colonizadores, antropólogos, etnógrafos, missionários e estudiosos das diversas culturas.
As últimas décadas do século passado, 80 e 90, especialmente, foram decisivas, porque abrigaram a publicação de uma diversidade de livros para o público infantil e juvenil. Inicialmente, obras de autores “brancos”. Depois, muitas autorias indígenas surgiram e, cada vez mais, diferentes vozes têm revelado e registrado memórias dos povos nativos brasileiros. Os avanços dos meios de comunicação e dos instrumentos tecnológicos têm ajudado aos povos das florestas darem visibilidade aos seus trabalhos e artes.
Quem é Ciça Fittipaldi?
Na X edição da Festa Literária de Santa Teresa – FLIST, o Centro Educacional Anísio Teixeira – CEAT, no histórico bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro, RJ, homenageou uma mulher, ilustradora, escritora, artista plástica, professora universitária, pesquisadora da cultura dos povos indígenas brasileiros e da cultura afro-brasileira.
Ciça Fittipaldi baila com seu pincel e caneta quando cria suas ilustrações para seus livros e de outros colegas escritores que retratam as manifestações culturais de diferentes povos nativos. Suas artes têm movimentos e coreografias, com cheiros, sabores, texturas e sons.
Ela começou a ilustrar nos anos 80 do século passado e chegou com força e vitalidade. Sua produção veio grande e com coreografia bem ensaiada e montada. Quando começou a publicar, a coleção Série Morená, suas ilustrações traziam traços que mantinham o olhar genuíno dos indígenas: gestos, traços, cores.
Suas ilustrações para Bichos da África (4 títulos) , do escritor Rogério Andrade Barbosa, revelavam expressões e culturas ainda pouco conhecidas dos leitores brasileiros. Esse pioneirismo de Ciça, tanto na área das culturas nativas brasileiras, quanto de culturas africanas, marca o início da sua carreira e precisa ser reconhecido e relembrado. Com isso, ela deu voz e vida a muitos povos que teriam caído no esquecimento e na inexistência.
Os anos se passaram, na década de 90, conhecemos obras de autoria de indígenas, textos e ilustrações. Hoje, são centenas de livros publicados. E a Série Morená continua a inundar de beleza os olhos de leitores de todas as idades. Nessa coleção, Ciça retrata as culturas indígenas como fruto de suas pesquisas e residências com diferentes povos nativos. São 8 livros dedicados a histórias e também informações dos povos: Kamaiurá, Nambiquara, Bororo, Karajá, Saterê-mauê, Tukano, Yanomami, Macuxi, Taurepang e Arecuna.
Uma preciosidade em tempos em que comunidades indígenas nativas são dizimadas e estão ameaçadas de extinção. Ela traduz, em diferentes perspectivas, o que há de simbólico para esses povos. Une o sagrado ao cotidiano, aproxima natureza e humano, numa fusão que nos transporta ao encantamento da sabedoria das águas, das árvores e de outros elementos da natureza.
Ela foi indicada em 2018 ao maior prêmio internacional de literatura infantil do mundo: o Hans Christian Andersen, cuja indicação já caracteriza uma premiação e reconhecimento de sua grandiosidade. Foi uma alegria para o CEAT receber Ciça em Santa Teresa, na X FLIST!
Sarau dos sabores com Ciça Fittipaldi
O restaurante Espírito Santa, localizado no bairro de Santa Teresa, criou, em homenagem a Ciça, o prato Cuia da Floresta, pela chefe de cozinha Natacha Fink: farofa de farinha de mandioca de Bragança, PA, com nacos de peixe fresco e seco, banana pacovão e temperos da Floresta Amazônica.
Ismar Barbosa, Ninfa Parreiras e Pepita Sampaio (autores e apreciadores da gastronomia) se debruçaram nas obras de Fittipaldi para apresentarem o “Sarau dos sabores”.
a lenda do guaraná
(Saterê-Mauê, povo das regiões do médio Amazonas, rios Madeira e Tapajós)
Perto do Noçoquém
Sagradas plantas
Sabores tantos
—
Dentro da lonjura da selva
Cotia descansa
Debaixo da castanheira
—
Um colar de contas
Os olhos do guaraná
Dos Saterê-Mauê
—
Antes que os olhos se abram
Colheita do guaraná
Saboroso olhar molhado
—
Trançados gestos em
Talos e folhas – caraná, arumã
Tecelagem da mata
—
Na festa da Tocandira
Dançam os jovens
Ferroados por formigas
o menino e a flauta
(Nambiquara, povo do oeste do Mato Grosso e Rondônia, rios Juruena, Guaporé, Madeira)
Na Casa das flautas
Sopra suave som
Soca a farinha, Maninha
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Pede mandioca
Seus secos galhos
São vivos ossos
—
Desenho colar de contas pretas
Caminho das carreiras de formigas
De olho no mato, nos coquinhos de tucum
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Colheita da mandioca
Branco mármore
De suculento sabor
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Na Roça do Milho
Pé de Taquara
No rastro da anta
—
Menino Cabixi plantado
Em roças de milho, amendoim
Pra ti, pra mim, pra si
Ninfa Parreiras (Itaúna, MG, 1970). Autora, psicanalista e professora. Curadora da Flist – Festa Literária de Santa Teresa.