Encontrei-a sentada na janela do quarto, as pernas para dentro, uma mulher: saia azul plissada, camisa branca de mangas longas, fechadas nos punhos com abotoaduras de madrepérola, a gravata limpa e engomada, sapatos pretos engraxados, meias curtas e brancas de náilon, embora mais magra. Aparentava um começo desta falsa magreza que as mulheres ostentam com regimes forçados. Cada detalhe tem um efeito diferente no corpinho dela; cada detalhe tinha a densidade e a maravilha de sua vida. Distraída, esfregava, num toque lento e meigo, uma prega da saia, feito estivesse ausente das agonias da casa, ela própria uma chaga aberta, dessas que latejam, doem e sangram, conformada em olhar a rua, a velha e indomada Rua da Concórdia. O sol que vinha por trás iluminava de tal forma os seus cabelos louros criando a aura que dava a impressão de princesa magoada e chorosa açoitada pelo infortúnio, olheiras ainda suaves escurecendo a leveza dos olhos. Pareceu não me ver. Aproximando-me fiz esforço para descobrir se estava triste ou zangada. Ela cerrou os punhos, numa atitude de que fosse me esmurrar. Vi, de um relance, sobre a penteadeira, as revistas, sempre as revistas. Que ela lia com avidez. E uma Bíblia, ela seria capaz de ler a Bíblia? De pé alisei os seus cabelos, ela recuou um pouco, toda encolhida. Me encostei no parapeito.
Os olhos não mentem: quase no fim da rua, e ainda na calçada do Cinema Moderno, doutor Vesúvio, sem parar e sem olhar para trás, tirou o chapéu Panamá, fez um gesto entre a cabeça e o ombro. Nunca ficou claro se ele se despedia da filha, ainda que não a perdoasse; se aquilo significava um adeus permanente cheio de raiva ou se saudava alguém, conhecido ou parente que cruzava com ele. Entrou na rua Nova e me voltei para minha amiga a ver se estava se despedindo do pai com uma lágrima nos cantos dos olhos, uma lágrima furtiva, conforme a canção da época.
Ela continuava apalpando a prega da saia, agora de olhos baixos, talvez convencida de que naquele instante acabava de acontecer um momento muito importante da sua vida e começava outro ainda mais importante porque deixava de ser uma condenada pagando castigo na Colônia Penal até criar vergonha, se arrepender e amadurecer, deixava filha de família, como se dizia então, para ser uma prostituta, uma puta, rapariga, quenga de má qualidade vendendo a boceta para comer e vestir; aguentando suor de macho e doença de vagabundo. Saí muito lentamente e voltei à sala de visitas tão cara a dona Quermesse, onde não encontrei ninguém e vi as sombras da tarde se derramando nas paredes. À noite chegaram os homens para cervejas, comidas, cama e alguma música. Homem não gosta de mulher, gosta mesmo é de bebida, bebe, bebe até cair e broxar, as mulheres esperando ardentes nos quartos. Chega, se deita e dorme.
Naquela noite, porém, tranquei-me no quarto com Vânia, que dormiu inteiramente nua sobre o lençol de cetim. Essas meninas nunca sabem que pra viver na zona é preciso contar logo com a proteção de outra mulher. Sentei-me na poltrona próxima à cama e à luz morna de um abajur pude ver como era jovem, de uma carne lisa e suave, indefesa para os duelos de sexo e amor, enfeitiçada pelo encanto da madrugada. Digo logo para evitar equívocos que a conheci ainda na adolescência e chegamos a estudar no mesmo colégio, nunca fomos amigas, mas conhecidas bem próximas, adversárias, com certeza, sempre adversárias. Houve um tempo em que dividimos até namorados.
Mais de uma vez pensei em acarinhá-la, seria comovente beijar os pelos e a furna escura, passando minha língua por entre os lábios grossos até que gemesse com a garganta fechada. Tinha à minha frente, dominada, a inimiga, inimiga e linda. Tem coisa que ofenda mais do que a beleza? Permaneci quieta, quieta e esfogueada, convencida de que a cumplicidade do silêncio seria a tensão necessária do amor. Confirmava, ali, o que sentira por ela, no exato instante em que entrou pela porta do nosso Colégio de Freiras pronta para os sabores da carne. Benvinda ao açougue, disse baixinho, ela parece que ouviu porque virou o rosto e entronchou a boca, os olhos baixos.
Pensava em tudo isso enquanto ela dormia, ora com a mão direita segurando um seio, ora sobre o ventre, ora embaixo da cabeça. E como eu desejava, ardentemente, ser aquela mão. No solitário das horas, também ficava naquela inevitável posição fetal, as mãos entre os joelhos, quando as pessoas indefesas procuram algum tipo de segurança. O que me pareceu certo, e para sempre, é que ela estava pronta para enfrentar a vida sozinha. Com a coragem do seu ventre. Expunha-se com a fragilidade do corpo mas lutaria sempre.
Pela manhã nossa mãe veio ter conosco, batendo, de leve, na porta. Verifiquei que havia cochilado por alguns minutos e me levantei arrumando os cabelos. Por que a menina está assim nua e esparramada na cama, dona Milena? O que você andou fazendo com ela? Eu lhe conheço muito bem. Não fiz nada, apenas testemunhei o sono dela. Gente boa é que você não é. Pensa que eu não sei? Estou lhe dizendo que apenas velei pelo sono. O que foi que houve? Suelen acordou mas não se espreguiçou feito as princesinhas dos contos de fadas. Apenas acordou assim como todas as pessoas normais acordam. Houve que você dormiu sem tomar banho, minha filha. Foi um sono só, também não tive tempo de mudar de roupa. Não mudou, mas dormiu com a roupa que veio ao mundo. Está com fome? Sim, com fome. Posso servir o café na cama, logo ouvimos a voz de Zenóbia, limpando as mãos no pano sujo, o mesmo pano que usava na sala, garçonete que era, não precisa, aqui não é hotel de luxo, minha filha, lembre-se disso, não esqueça, nunca. Mas é tão pouco, pra não cair no costume. Não se preocupe, Zenóbia, sei me cuidar. Só aí percebeu que continuava nua, não providenciara sequer um lençol para se cobrir. Um momento, ela pediu, só um momento. E jogou sobre o corpo a blusa branca, de mangas longas, as abotoaduras de madrepérola balançando. As mãos alvas.
Só tomo café com champanhe. Vânia disparou perdendo a timidez se é que algum dia foi tímida. Costume de casa, minha mãe me ensinou. Exija do seu marido. Fiz assim com seu pai. Champanhe Mas que história é esta? Seu pai esqueceu de deixar o dinheiro. Doutor Vulcão se faz de esquecido em tudo, até que tem uma filha puta. E luxenta. Não precisa humilhar, dona Quermesse, o nome de meu pai é Vesúvio, não é Vulcão. E meu champanhe? A realidade não é humilhação, é realidade, dura e tesa, mas realidade. Agora vá, pelo menos, tomar um banho, antes que crie aranha, vamos, vamos.
Enquanto corria a conversa senti falta de Zenóbia, fui à janela, aquela mesma janela de que falei antes e vi-a entrando na estreita porta dos fundos do Leite, justo o restaurante de maior luxo do Recife, frequentado pelos milionários mais poderosos. Não sei o que me levou àquela curiosidade, até porque nada daquilo me passou pela cabeça. Não demorou ela apareceu com uma garrafa de champanhe na mão. Não sei mesmo por que fui movida pela inquietação. Nada justificava.Vislumbrei o sorriso estranho, imbecil e cruel do doutor Vesúvio ali parado, amassando o chapéu panamá. Parecia satisfeito e, no entanto, distante, feito tudo aquilo fizesse parte de uma trama fantástica. Algo de que ele tivesse comando ativo, e de que não integrasse. Apenas um expectador. E nada mais. A um só tempo, satisfeito e indiferente. Deixei-os conversando e fui para a cozinha, em busca da empregada que já devia estar chegando. Demorei-me um pouco a investigar o que aquilo tudo significava.
O café já estava posto: frutas, sucos, pães, biscoitos, leite, embora a nossa menina não comesse pães nem biscoitos. E champanhe imagine champanhe em plena zona de prostituição onde reina a pobreza, senão a miséria. A mesa de madeira, toalha quadriculada. Vânia entrou em companhia de dona Quermesse. Procurei Zenóbia num canto da sala. Com que dinheiro comprou este champanhe? E no Leite?! É que Zebinha, o chefe da cozinha, sempre me disponibiliza alguma melhora quando preciso. Amante de muito tempo, quando não tenho dinheiro pago com uma noitada de gritos e gemidos. Seja como for a gente se entende. Mas você não vai alimentar luxo de meninota, não é, Zenóbia? Não fique com ciúme, meu bem, nessas horas a gente precisa comungar. Você foi longe demais, essa menina sabia que hora sim hora não vinha morar aqui, não se acrescente, por favor. Parece que você, Milena, é que está indo longe demais. Não é?, Não conheço essa figura aí comendo frutas com champanhe. Conhece ou não conhece? Então desembucha, vai, desembucha, conhece como? Já disse, não sei, não conheço, nunca vi. O que doutor Vesúvio estava fazendo lá embaixo? Pagando champanhe? Que doutor Vesúvio? De que você está falando? Doutor Vesúvio, ora, foi ele quem trouxe a filha para a miséria da putaria, tá sabendo não tá? Só sei que não sei.
Raimundo Carrero nasceu em dezembro de 1947 na cidade de Salgueiro, sertão de Pernambuco, e é um dos autores mais premiados do Brasil. Conquistou os prêmios Jabuti em 2000, Prêmio São Paulo em 2010, o prêmio APCA em 1995 e 2015; o Machado de ASSIS em 1995 e 2010; Prêmio Revelação do ano em 1997 da Secretaria Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul; o prêmio José Condé em 1984 e prêmio Lucilo Varejão em 1986. Tem obras traduzidas na França, na Romênia, no Uruguai e na Bulgária.