Enquanto a primavera explode no Brasil, o outono irrompe no hemisfério norte. Para explorar esses extremos, o Contrafaccionistas convidou a Luciana, que é artista da dança, fotógrafa e pesquisadora para criar um depoimento através de texto e foto que traduzisse as entranhas de quem se prepara pra juntar os pedaços da alma que o outono costuma espalhar por aí.
Primavera – Outono
Era um domingo ensolarado e quente. Fiz uma visita a um jardim-horta de uma amiga e voltei pra casa com o braços cheios das coisas mais verdes, mais coloridas. Durante aquela tarde, enquanto comia o que era verde, saí combinando as cores por formas, tamanhos, expressões. Espalhei os buquês de acordo com os cômodos da casa. Pensei na flor para ver quando acordar, a flor para ver enquanto se come, enquanto se escova os dentes, quando se abre a porta de casa.
No meio da noite, acordei com um barulho dentro do meu quarto. Tomada pelo susto, liguei a lanterna em busca de rastros. Depois de um tempo, me dei conta de que o barulho era das pétalas de uma das flores que haviam caído. Não sei se saber daquilo tornaram as coisas menos assustadoras. Dormi. No dia seguinte, chegando do trabalho, fui recebida por pétalas espalhadas pelo chão da entrada da casa. Sorri como quem acha bonito o por-do-sol. Era estar diante de uma beleza imensa e sutil, de gosto amargo-doce, a beleza do fim. De um dia. De uma flor.
Com o passar dos dias, acompanhava a mudança das flores que ganhavam cores ocres e escuras, texturas ásperas e secas, formas contorcidas e magras. Achava aquele processo tão profundamente interessante e belo, mas na verdade estava confundindo essa apreciação pela minha incapacidade de aceitar o tempo das coisas. Meu apego era grande, não estava pronta pra me desfazer delas tão rápido. As flores começavam a apodrecer, o mau-cheiro se espalhava pelos quartos. Percebi que guardava cadáveres na minha própria casa. Olhei pela janela, era outono. Apesar das flores, a primavera acontecia em outro lugar do mundo. Outono, era verdade. Em algum lugar aqui dentro quando entendo que é outono me bate um desespero tremendo. A vontade que eu tenho é de colar as folhas amarelas, uma a uma, de volta aos seus galhos secos, lutando contra o vento, contra a força da gravidade, contra o meu próprio destino. É no outono que lembro que mais um ano se vai. E vou com ele, mais velha.
Será que trago o suficiente comigo pra sobreviver ao inverno?