“Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte”. Merleau-Ponty, 1994, p. 208.
A beleza é uma construção social e o corpo humano é sempre um objeto pictural. A imagem do corpo é capaz de provocar impulsos sexuais, e a Arte através de suas principais manifestações – pintura e escultura – permitiu a propagação de imagens do corpo com poder de capturar o olhar do outro, de forma a provocar manifestações no corpo deste outro.
As experiências do corpo nos fazem marca desde a primeira infância, é neste momento de formação neurológica ainda muito precária, em acelerado processo de desenvolvimento, que forma-se o que podemos chamar de existência consciente. Freud nos aponta que não nascemos com um corpo, mas sim o constituímos a partir da união da libido com a carne. A dor, o prazer, a satisfação das necessidades e a experiência visual podem determinar o destino pulsional do sujeito.
Descartes em 1649 já se dedicava a refletir sobre a incisão dos sentimentos no corpo “As Paixões da Alma” fazia suposição da existência de uma glândula no meio do cérebro que era a sede da alma, imaginava que os pensamentos ficavam no cérebro e as emoções no coração, e o sangue agia na pulsação das emoções no corpo.
Psicanalistas do mundo todo se debruçaram sobre este tema no congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2016. O título do congresso – Corpo Falante – é um conceito que visa dar conta do infinito universal de cada sujeito. A soma do corpo biológico, psíquico, simbólico e anímico é um corpo de pulsão e linguagem, em constante transformação.
Merleau Ponty destaca a linguagem como “laço de carne e ideia”. Para ele a ideia sempre ocorre com uma experiência carnal. Inteligência sem linguagem seria instinto, e esse lugar das intuições foi desbravado por Freud e Lacan.
A arte e psicanálise dialogam nesse lugar estranho e íntimo, segundo Marie-Hélène Brousse “O artista interpreta diretamente o modo do objeto pulsional, que corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida, nossos modos de gozo.“
A arte é capaz de interpretar o inconsciente de sua época, e trazer para o mundo físico a expressão de coisas latentes. Pode revelar a dimensão pulsional de forma muito sofisticada, e nos deixar bastante perplexos. O uso de diferentes tipos de linguagens alcança conexões simbólicas muitas vezes indizíveis. Neste trabalho é muito comum surgirem referências ao corpo.
Nuances da dimensão pulsional no corpo aparecem na obra da artista Monica Piloni. Nela encontramos rabos de cavalos que saem de bocas interconectadas, pernas duplicadas sem corpo, uma bailarina despedaçada, corpos em pedaços. Há uma fragmentação e um esquartejamento da beleza por uma personagem muitas vezes sem face, de cujas aberturas não vertem órgãos ou vísceras, mas um incômodo vazio. Também há referência aos objetos fetiche naquilo que Freud mais enfatizou – pedaços do corpo como objeto, ou então objetos que recobrem pedaços do corpo, como sapatos, espartilhos e outros.
A arte de Monica Piloni seria rechaçada e incompreendida em outras eras. Santo Tomás de Aquino (1225-1274), um dos pensadores que tratou do tema do belo na obra de arte defendia critérios como claridade, proporção e integridade para que uma obra fosse bela. Claridade no sentido físico na cor, iluminação no sentido espiritual. Proporções deveriam ser realistas e a imagem do corpo íntegro. O belo não incluía partes de corpo ou deformidades. O corpo humano teria que ser bonito devido aos ornamentos naturais e artificiais como roupas e jóias.
Os adereços de corpo são formas de modificar ou compor a imagem de corpo, construindo diferentes simbolizações ao longo da história nas mais diversas formas, cores e materiais. As pesquisas da artista visual Talitha Rossi trazem imagens e inserções inéditas. Uma de suas últimas criações está no limiar entre máscara, jóia e adereço. Criando uma conversa entre as tradições tribais e o futurismo usando materiais modernos como bijuterias e enfeites carnavalescos.
Para o psicanalista Schilder (1986-1940) alguns povos primitivos e certos pacientes psicóticos conseguem transmutar a imagem corporal através de uma articulação na imaginação libidinal; como corpos híbridos, anamórficos, divididos… Já a estrutura do neurótico só consegue modificações “autoplásticas” através de máscaras, roupas e interferências como piercings, tatuagens, cirurgias e outros tipos de interferências no corpo.

Na série “O som do Narciso” da artista Talitha Rossi encontramos narrativas com uma personagem humanóide de franja longa e uma vestimenta sugerindo nudez, com apagamento dos órgãos sexuais. Ela habita ambientes inóspitos acompanhada de equipamentos eletrônicos. Os aparelhos surgem como prolongamento do corpo e falam sobre a mutação antropológica que ocorre atualmente na relação dos corpos com a própria imagem e o compartilhamento em rede.
Nas performances de Rafael Bqueer há um corpo ora preso ou atravessando uma superfície, ora mimetizado aos objetos, ora em situações adversas no ambiente. Contornos de corpos inseridos no contexto do mundo das coisas, apontam para o desejo de se desvincular das pressões sociais, da punição, ou de se adequar a aos padrões estabelecidos. Em uma reflexão Foucaultiana, Bqueer deseja romper com os mecanismos de disciplina e sequestro dos corpos, os quais devem ser continuamente exercitados, treinados, modelados, remodelados, corrigidos através de recompensas e punições.
“O corpo é enigmático: parte do mundo, por certo, mas estranhamente oferecido, como seu habitat, a um desejo absoluto de aproximar-se do outro e de unir-se a ele também em seu corpo, animado e animante, figura natural do espírito. Com a psicanálise o espírito introduz-se no corpo, assim como, inversamente, corpo introduz-se no espírito.” Merleau-Ponty, Signos, O homem e a adversidade.
Para Schilder o modelo postural do nosso corpo se relaciona com o modelo postural dos corpos dos outros. A experiência da nossa imagem corporal e a experiência dos corpos dos outros estão intimamente interligadas. Assim, as emoções, as ações e percepções são inseparáveis da nossa imagem corporal.
“Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo.” Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito.
Assim o homem que interfere no mundo é constantemente transformado por ele, se mistura nele, dentro e fora. E o corpo é seu instrumento, reflete, expressa, fica marcado e pulsa no mundo constituindo algo muito além do físico ou biológico.
Ana Maria Lima é colunista da Philos, jornalista e psicanalista, atua no mercado de arte e sua pesquisa percorre a arte moderna e contemporânea, a linguagem, antropologia e psicanálise. Escreve artigos para publicações de arte e psicanálise.