A Philos visitou a exposição Corpo-Território apresentada pela Escola Rabisco de Arte Pública em parceria com a Casa Bicho e produção do Ocupa. A mostra, resultado de um ano do curso de Aprofundamento em Prática Artísticas e Narrativas Poéticas, contou com o trabalho de treze artistas em formação, vindos de lugares distintos do Rio de Janeiro, para dialogar sobre as suas vivências e a multiplicidade geográfica da cidade. Para a curadora Mila Marques:
A curadoria foi pensada como um processo pedagógico, de entender o que os alunos traziam das suas vivências e trabalhos na rua e de mostrar para eles referências que dialogassem e potencializassem as suas criações. Nós pensamos a arte pública como arte contemporânea dentro do espaço urbano, seja ela de que forma for, em diferentes suportes ou plataformas possíveis. Essa exposição [Corpo-Território] quer mostrar esse espaço público em expansão. Uma espécie de exercício, de amarração, de criar diálogos e pontes entre trabalhos que aparentemente são bem diferentes.
Em Corpo-Território, a relação de corpo e espaço é ligeiramente deixada de lado na construção da narrativa da exposição para dar lugar ao que a curadora chama de vivências urbanas.
A partir daí percebemos uma relação da corporalidade no trabalho dos alunos, entendendo o corpo não apenas como território mas como um veículo atravessando lugares na cidade. E dependendo de qual e de quem é esse corpo, ele terá vivências diferentes: Se for mulher, se for cis ou trans, se for negro ou branco… E esses corpos diferentes nos ajudam a pensar a vida de quem vive essas experiências, memórias e afetos nos lugares em que transita e que desafia uma série de limites que são impostos nas relação de poder na cidade. Os corpos nunca vão atravessar da mesma forma os mesmos territórios, as cidades são hostis com esses corpos, que sentem essa hostilidade e respondem. São respostas aos trânsitos e performances, são questões de gêneros e até mesmo sentimentais, que nos atravessam e nos permitem dizer algo.
Para o orientador Carlos Bobi, “é necessário também olhar para o trabalho desses artistas numa perspectiva contemporânea, respeitando o que os alunos trazem, eles estão cheios de background. É uma forma de repensar as suas perspectivas e suas relações com esse espaço público que cada um navega. E na Escola a gente traz os artistas urbanos que já fazem um trabalho ʽfora da caixaʼ para trocar com os nossos alunos, para que tragam um pensamento, uma poética das ruas e para as ruas. Sejam esses artistas do grafite ou da performance, videoarte, projeção… A rua permite experiências e produções em grandes escalas, os suportes são grandes muros e concretos. E isso nos deixa muito felizes, porque possibilitamos esse lugar de repensar as representações também. Foi o que fizeram o Edu de Barros e o Gabriel Aquino, que são nomes que já passaram pela Escola e que já traziam essa dimensão maior da prática da arte nas ruas e estão fazendo isso até hoje em suas produções.”
A fragmentação é também muito importante para se pensar corpo e território, que são delineados por espacializações físicas tanto entre as cidades, bairros e ruas, como pela conformação anatômica do corpo. Pensando nisso, o artista Chiko desenvolveu seus trabalhos que expressam o movimento através da quebra do corpo.
Eu uso o corpo muito para retratar o olhar da sociedade diante ao próprio corpo, ou seja, do mais teatral e caloroso ao mais frio e cirúrgico. O meu trabalho gosta de desenvolver uma anatomia muito certa, só que ela tem um gesto, uma dança, é performática de certa forma. Eu me encontrei no carvão por que eu vim do desenho. O seco é uma parada que me atrai muito, o seco para falar do frio, da dureza e da cabeça. E meu trabalho fala de como essa inconsciência corporal se estabelece a partir da dor e do sofrimento. Essa série que eu desenvolvi fala sobre a procura do prazer na angústia.
Porque a angústia, Chiko?
A angústia [que parece estar se contorcendo também, não é?] vem da perda. Eu perdi a minha irmã muito cedo. Ela tinha 22 anos e eu tinha 16 anos, e isso me trouxe a ideia do que era frio, por assim dizer. A angústia apareceu com isso, com a doença da minha irmã. E essas pinturas representam a volta de contato comigo mesmo, com o meu corpo. Porque depois de acontecerem coisas muito chocantes, impactantes, a gente trava, a gente cega. E junto com essas obras, com a psicanálise e o cuidado pessoal, eu venho desenvolvendo essa cura.
Na obra de Chiko nós vemos que o corpo é a única coisa que está delimitada, que está enquadrada, mas ainda assim existe um espaço que é fixo e ele não é o corpo, é o que o suporta, o que o enquadra enquanto ele está meio retorcido sobre si.
É uma pintura que fala da dor que vem do corpo?
Essa série fala sobre dores e prazeres para mim, sobre a angústia que se acha na natureza e no contato com a realidade, que surgiram durante o meu processo, de forma cronológica, sobre a dor, o contato com o próximo e as pessoas que me ajudaram. Fala sobre a contra-reação.
Você começa a pintar a partir desse evento [a perda da sua irmã] ou isso já é algo que te toma desde antes? Até porque você é bastante jovem, em que momento surge o suporte da tela para você se debruçar?
É isso mesmo: A pintura foi a dor que se tornou gesto. Eu comecei a pintar esse ano [2021] e são minhas primeiras telas. Eu venho muito do desenho que é a minha base, e foi um processo bem pensado e organizado, existe um passo a passo que se insere ali e que é vindo do carvão, às vezes é um processo que vem antes mesmo da pintura, eu faço os elementos e os isolo, ou trabalho os fundos e pinto as silhuetas em branco e pinto com o carvão. É uma forma de pensar se o corpo está aprisionado no espaço ou se você tem a possibilidade de fazer com que esse corpo retorça em outro lugar também.

Neiodeva é minha ultima obra na serie das três procuras dos prazeres: na natureza, no próximo e no eu. Nesse ‘eu’ reflito o meu quarto, meu alinhamento com ele e o conforto de ver cada canto com sua definição e refinação visual. Cantos e quinas que viram-se outros e que acolhem ou não de acordo com o seu olhar, seja ele visto do lado de dentro ou de fora da porta. Durante o confinamento, organizei o meu quarto parede por parede pra mim mesmo, pela primeira vez na vida. Morando dentro de uma caixa que define a mim e minhas experiências comecei a conversar com eu mesmo, soltando do desconforto de não estar em um território que minha cabeça enxergasse como próprio me fez me abrir a mim. Foi ai que começou a conversa com a minha sombra, que dói e distorce meu corpo e some com minha cabeça. O toque e a simetria espiritual que esta em poder conversar e entrar em consenso com essa sombra é o prazer que quero retratar com essa pintura. Não é um processo prazeroso pois a sombra é bruta e embaçada, o progresso esta em perder uma mão de controle e deixar os sentimentos atravessarem o corpo e sua reflexão corroída como são. Não é brigar, é conversar.

Essa é uma tela que fala sobre isso, é uma desconstrução do meu conforto visual que é o desenho, que me desafia. O nome dela é Presa na saída do berço, então tenho o berço sendo esse conforto, sendo a segurança da imagem. Você vê um joelho, um braço, uma mão, uma perna… E sabemos identificar essas partes mesmo sendo algo abstrato, mesmo sendo quase formas, mas que se desdobram em si, em silhuetas que se concretizam e ao mesmo tempo não sabem aonde vão. Essa desconstrução da imagem veio com esse processo de pintar algo mais bruto que me fizesse sentir mais, sem me deixar isolar pelo meu berço. E sobre o meu berço eu faço essa representação ali, com as curvas e tudo o que limita os nossos movimentos. Minha obra fala sobre o meu processo de cura e psicanálise usando o corpo sem cabeça e os sentidos que vem com ela pra dar imagem ao transbordo da dor ou prazer mental pro físico, as obras são retratos e pensamentos específicos de épocas da minha vida, criando uma linhagem cronológica do meu estado mental e etapa de autoconhecimento através do trabalho. Coisas que eu analiso, que me sustentam e me dobram e acabam sendo movimentos da obra. Assim eu penso esses movimentos na minha cabeça. São mais subjetivos. E eu tento buscar a inconsciência sozinho. E depois venho tentar eu mesmo entender o que está ali. Corpos, ou melhor, o corpo é algo que eu encontrei nessa independência do pensar, nessas análises.