A diáspora africana refere-se às comunidades ao redor do mundo descendentes do movimento histórico dos povos da África entre os séculos XVI e XIX, em direção às outras margens do Atlântico através do tráfico de escravizados. O termo compreende a trajetória forçada das populações africanas marcadamente negras e seus desdobramentos na formação de outros territórios e novas articulações. Se tivermos como intenção relacionar e registrar as histórias afro-atlânticas, sabidamente plurais, sem diminuí-las em sua complexidade, não podemos perder a perspectiva história desse processo. Tomemos como exemplo o nosso país. O Brasil foi a última nação a abolir a escravatura e onde o tráfico negreiro durou mais tempo. O contato entre os portugueses e os diferentes povos indígenas e africanos em terras brasileiras, durante o período colonia, impôs aos grupos submetidos ao processo de escravização os elementos próprios dos códigos culturais europeus. Cabe ressaltar que esse processo foi marcado pela violência, assim como pela criação de diversos modos de resistência e a consequente assimilação mútua. Nossa herança cultural nasce desse contato, desse tensionamento, dessa diversidade. Ainda assim, no campo das artes, foram construídas diversas imagens associadas à concepção de identidade e cultural nacional – similares em sua hegemonia discursiva – que apresentavam uma estrutura hierárquica de superioridade e subordinação racial, no que diz respeito aos esterótipos presentes nas imagens associadas às minorias representativas e a inferiorização de suas expressões artísticas e culturais. Os grupos socialmente marcados como o “outro” dentro da lógica colonizadora tornaram-se o “outro” no que se refere tanto à representação quanto à criação artística, ou seja, essa existência subalterna acontece tanto na vida quanto na arte. Arte é linguagem e linguagem é elemento constitutivo de mundo. A perspectiva histórica nos aponta que o racismo está na base da constituição da nossa sociedade, e ele é estrutural e institucional, permeando todas as áreas da vida.
A grande questão é identificarmos quais são os mecanismos que colaboram com a manutenção do racismo no campo das artes, para a partir disso criarmos estratégias de ação antirracistas que permitam o surgimento de diferentes lugares de criação e produção que sejam de fato representativos e inclusivos. Analisemos algumas situações: 1. O racismos inviabiliza – nesse caso, torna-se fundamental garantir o direito à existência dando voz a narrativas contra-hegemônicas, pois na luta por existência é necessário a coexistência de diferentes vozes; 2. O racismo inferioriza – sabemos que as ideologias raciais surgiram como tentativa de justificar a inferioridade do negro e legitimar o processo de escravização. Diante disso, tudo o que vinha das populações negras foi considerado inferior, desde suas características físicas até a produção de conhecimento. No meio artístico, esse julgamento previamente negativo e intencional não permite uma avaliação honesta da produção de pessoas negras. Existe uma série de artistas visuais cuja obra tem sido negligenciada ao longo do tempo, porque a crítica de arte não se propôs a conhecer todos os elementos das culturas africanas e afro-brasileiras que fazem parte de seu universo criativo, fazendo uma leitura que se limita a uma simples comparação a referenciais de arte e métodos europeus, por exemplo. Um caminho possível seria reconhecer e legitimar como fonte de pesquisa os saberes também construídos como “outros”, que são aqueles das religiões afro-brasileiras, dos povos originários, das culturas de tradição oral, entre outros; 3. O racismo marginalizado – à luz dos apontamentos anteriores, é preciso revisitar a história da arte brasileira através da construção de uma narrativa descolonizada, que se disponha a rever os lugares marginalizados destinados à produção artística de pessoas negras e reorganizá-la de preferência fora de qualquer estrutura hierárquica de pensamento colonial. Por fim, tais debates impactam diretamente o meu processo de criação e pesquisa em arte, na busca de novas possibilidades de existência que não sejam pautadas por experiências de opressão e desigualdade. Utilizando-se das palavras da artista visual e escritora Grada Kilomba, “quero ter a liberdade humana de ser eu”. É urgente termos a possibilidade, independentemente do nosso campo de atuação, de restituir a humanidade que nos foi negada pelo processo de escravização e que procura nos definir até hoje. O lugar que precisamos ocupar não é nem o lugar de poder (aquele que foi criado pelo sujeito colonial, construído como humano e universal, ou seja, afirmado como branco) que mantém os mecanismos de controle e dominação e a estrutura de privilégios, nem o lugar da vulnerabilidade (daquele que foi construído na oposição da norma, o sujeito da subalternidade, isto é, o lugar destinado à população negra), mas um terceiro lugar criado através da consciência e da ação estratégica, que é o lugar da potência – neste contexto compreendida como “a capacidade de mover”. Que nós tenhamos a oportunidade de mover as estruturas que ainda nos aprisionam.


Glauce Helena é artista visual e arte educadora, licenciada em educação artística pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Participou da exposições e iniciativas culturais ligadas à diversidade da cultura brasileira de matriz africana, como O poder da criação (CCBB, São Paulo, 2016) e Estêncil autorretratos (Sesc Osasco, São Paulo, 2015). Atualmente é gestora do Terreirão Cultural.

Publicado por:Philos

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