Vivemos, no Brasil, uma divisão cultural que precisaria ser melhor compreendida. Temos um modelo dominante, oficial, escolarizado, técnico, individualista etc… E outro, espontâneo, diversificado, heterogêneo e tradicional que poderíamos chamar precariamente de popular. Ambos são contemporâneos, convivem no mesmo ambiente e podem, para ficar no campo da literatura, ser identificados por meio de discursos. Vejamos Noite de hotel, letra de música de Caetano Veloso:
Noite de hotel / a antena parabólica só capta videoclipes / diluição em água poluída / [e a poluição é química e não orgânica] / do sangue do poeta / cantilena diabólica / mímica pateta / noite de hotel / e a presença satânica é a de um diabo morto / em que não reconheço o anjo torto de Carlos / nem o outro / só fúria e alegria / pra quem titia Jagger pedia simpatia / noite de hotel / ódio a Graham Bell e à telefonia [chamada transatlântica] / não sei o que dizer a essa mulher / potente e iluminada / que sabe me explicar perfeitamente / e não me entende / e não entende nada / noite de hotel / estou a zero / sempre o grande otário / e nunca o ato mero de compor uma canção pra mim foi tão desesperadamente necessário.
Note-se o discurso fragmentado, a sintaxe, as elipses (Noite de hotel / a antena parabólica só capta videoclipes /diluição em água poluída), o vocabulário e as imagens singulares , as citações com referências a Drummond, Mick Jagger e ao disco Sympathy for the devil. As imagens inesperadas, a mulher potente e iluminada que não entende nada, etc. Vejamos, agora, a letra de “Luz Negra”, samba de Nelson Cavaquinho e A. Cardoso:
Sempre só / Eu vivo procurando alguém / Que sofra como eu também / E não consigo achar ninguém / Sempre só /E a vida vai seguindo assim /Não tenho quem tem dó de mim / Estou chegando ao fim / A luz negra de um destino cruel / Ilumina o teatro sem cor / Onde estou desempenhando o papel / De palhaço do amor
Ambas as letras tratam, em suma, de um mesmo assunto: a solidão. O texto de Caetano Veloso talvez seja incompreensível, na verdade puro grego, para cerca de 80% da população ou mais. O texto de Nelson Cavaquinho e A. Cardoso, compreensível para todo mundo, independentemente de classes sociais, faixas de idade e graus de instrução, é crivado de clichês e frases feitas (a vida vai seguindo assim, destino cruel, não tenho quem tem dó de mim, palhaço do amor), usa vocabulário público e imagens do senso comum, usa um discurso linear, claro e direto e, enfim, poderia ser considerado, por um crítico literário dogmático e um pouco apressado, ruim, banal e medíocre. Acontece que “Luz Negra” é um clássico da nossa música popular. Fica a pergunta: como um discurso que recorre a fórmulas, usa frases feitas, estereótipos e clichês pode, mesmo assim, paradoxalmente, ser considerado um clássico?

Creio que no caso estão em jogo dois modelos construtivos de discursos e não apenas um, marcado pela cultura dominante e pela educação formal. Vamos imaginar que alguém precise transmitir um recado importante. Se o tal recado for dado por escrito, seu autor estará livre e independente da situação face-a-face e de um contexto determinado, temporal, concreto e situado. Tanto é verdade que mesmo que o autor já tenha morrido, seu recado poderá ser dado.
Por causa dessa autonomia com relação à situação da leitura, seu autor poderá ser original, recorrer a artifícios de linguagem, apelar para fragmentações, inventar palavras novas, arriscar-se a certas ambiguidades, experimentar jogos sintáticos, parodiar, estilizar, fazer citações e até optar pela sobreposição dos códigos verbal e visual. Poderá, sem dúvida, abordar temas obscuros de seu exclusivo interesse pessoal. Poderá ainda ser propositadamente agressivo com o leitor, até porque não haverá perigo de revide.
Não pode ser descartada a possibilidade de que para seu autor seja indiferente ser compreendido ou não. É possível até imaginar, principalmente se considerarmos certos paradigmas dominantes, que ele seja intencionalmente incompreensível, ambíguo e hermético.
Todos esses procedimentos, atitudes e recursos são possíveis porque, no texto escrito, o leitor poderá ler e reler várias vezes, consultar manuais, dicionários e enciclopédias (google, wikipedia e outros), pedir a opinião de outras pessoas, trocar ideias com especialistas, refletir sobre o que leu e, assim, construir sua interpretação.
É importante ressaltar que, neste caso, o autor conta automática e necessariamente com uma “interpretação”. Vale lembrar que todo texto escrito é obrigatoriamente e por princípio um solilóquio, pois o escritor na verdade está falando sozinho.
Ocorre que se o mesmo recado for transmitido oralmente, a situação tende a ser bastante diferente. Não costuma fazer sentido, numa comunicação face-a-face, utilizar vocabulário esotérico, complexo e especializado. Também não faz sentido falar de viva voz e entrar em muitos detalhes, pois isso seria enfadonho. Não faz sentido ainda abordar assuntos através de pontos de vista demasiadamente singulares. Nem falar uma coisa para dizer outra. É desaconselhável fazer citações. É melhor evitar falar em outras línguas. É inadequado fazer experimentações com a sintaxe. É arriscado inventar palavras ou recorrer a imagens e metáforas demasiadamente abstratas ou obscuras. E, claro, convém evitar ofender o ouvinte até porque ele pode não gostar e resolver partir pro tapa. Em suma, o discurso escrito e o discurso oral face-a-face obedecem a modelos construtivos e objetivos diferentes.
No texto escrito o ato locucionário [o que é dito] e a força ilocucionária [o que se quer dizer] podem estar separados. No discurso feito de viva voz cara a cara, o ato locucionário e a força ilocucionária tendem sempre a estar sobrepostos. Sobre o assunto, recomendo o livro de John Searle, Expressão e Significado: Estudos da Teoria dos Atos de Fala (Martins Fontes, 2002). Tento dizer que estão em jogo duas estratégias mentais. Quando escrevemos, tendemos a adotar uma. Quando falamos, outra.

Se há uma característica fundamental em todo o discurso que pretenda ser popular – eis minha proposta – é o fato de ele ser criado e construído, tanto faz se oralmente, por um poeta analfabeto, ou através da escrita, no caso de um poeta alfabetizado, tendo como pressuposto a comunicação oral, ou seja, a situação da comunicação feita face-a-face e suas implicações.
Podemos chamar os textos escritos para ser lidos como quem lê – aqueles que pressupõem que o leitor possa reler, consultar dicionários e enciclopédias e pensar sobre o que leu até estabelecer sua interpretação – de discurso-eu. Tal discurso é ligado ao modelo de consciência escolarizado, expressão do sistema cultural dominante, marcado pelo individualismo, pelos cânones da literatura, pela teoria literária, por procedimentos técnicos e científicos [citações, experimentações e manipulação de estruturas, por exemplo].
Trago aqui um exemplo limite. Um trechinho de Catatau, romance experimental de Paulo Leminski, publicado pelo autor em Curitiba, no ano de 1975):
(…) Assim foi, e quando vimos mais uma manhã trascurva, tarde chegava aquele já! Vier a acontecer, prevenido prevalece sobre ingênuo. Sentir que vai acontecer, isto seja bem um quisto: aparecer como venho fazendo sem um tiritar nem um porquê. Um portento me erraptou, me deixando aqui fora: bolo de gosma, pedra de lascar, a gema do ôvo, irmã gêmea da menina do olho, eu, atanásio, santinácio e outros companheiros de apanágio! (…)
Naturalmente, trata-se de um texto dirigido a iniciados na literatura escrita e seus cânones. Podemos considerar, por outro lado, textos escritos para ser lidos como quem ouve. Neste caso, o escritor é marcado pela oralidade e escreve quase como se estivesse falando com o leitor num contato face a face. Como vimos, para isso ele tende a fugir de abstrações, citações e erudições, vai usar vocabulário público, vai buscar a concisão e recorrer a metáforas e imagens visualizáveis ou palatáveis de forma a facilitar a comunicação com quem ouve.
Podemos chamar esse texto de discurso-nós, por tentar se comunicar e colocar as angústias, perplexidades e demandas humanas mais gerais, acima das angústias, perplexidades e demandas singulares e individuais. Segundo R.G. Collingwood, “toda afirmação da emoção que [o artista popular] profere é precedida da rubrica implícita não do eu sinto, mas do nós sentimos.”
Podemos ainda vincular esse discurso ao modelo de consciência tradicional, marcado, entre outros fatores que não caberia apontar aqui, pela valorização da coletividade, do senso comum e pela performance face-a-face que, neste caso, sempre busca a comunicação e o compartilhamento. Voando pelos ares da cultura dominante e escolarizada, predomina insistente a ideia de que os textos e as formas literárias populares são, necessariamente, mais simples e menos profundos se comparados os textos marcados pela cultura escrita. Isso não é verdade. Trago aqui um trecho do livro Seis propostas para o próximo milênio (Companhia das Letras, 1991), recuperado por Ítalo Calvino, de uma narrativa popular que, inclusive, já ressurgiu em nossa literatura de cordel:
O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo seu soberano entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real e negligenciar os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para a sua câmara, recusando separar-se dele. Apavorado com essa paixão macabra, o arcebispo Turpino suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir daquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.
Note-se quantos assuntos complexos e ricos o texto acima levanta. Vale lembrar quantas imagens do mesmo porte surgem nos contos de encantamento repletos de temas difíceis de colocar em palavras [a “Bela Adormecida” ou a Fera de “A Bela e a Fera”, por exemplo). Tento demonstrar que é possível tratar de temas humanos profundos e densos utilizando uma linguagem enxuta, concreta, visualizável e compreensível.
O lugar-comum e a previsibilidade, como disse Romildo Sant’Anna em seu estudo sobre a moda caipira no livro A Moda é Viola: Ensaio do Cantar Caipira (Editora Arte e Ciência, 2000), não depreciam o conceito criativo da autoria: “O comum nunca foi feio, sendo certo que por ser bonito é que ficou comum”. O que interessa aqui dizer que o escritor pode optar entre dois modelos diferentes para escrever seu texto. Ambos são válidos e fazem sentido. Um deles, certamente, é mais popular e acessível.
Por sorte, muitos autores cultos recorrem, não poucas vezes, ao discurso narrativo, claro e direto, marcado pela oralidade. Vejamos este belo poema de Cecília Meireles, intitulado “Canção” e publicado em seu livro Poesias completas – Viagem e Vaga música. (Civilização Brasileira, 1973):
Pus meu sonho num navio
E o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
A noite se curva de frio;
Debaixo da água vai morrendo
Meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso
Para fazer com que o mar cresça,
E o meu navio chegue ao fundo
E o meu sonho desapareça
Depois, tudo estará perfeito:
Praia lisa, águas ordenadas
Meus olhos secos como pedras
E as minhas duas mãos quebradas.
Creio que qualquer criança de oito anos, se escutar com atenção o poema de Cecília Meirelles [assim como escutar o samba Luz negra de Nelson Cavaquinho] – refiro-me, ressalto, à escuta e não à leitura – pode se interessar, se espantar, se emocionar e ampliar sua sensibilidade e sua visão das coisas da vida e do mundo.

Minha sugestão para os professores é que busquem apresentar comparativamente a seus alunos, com exemplos da música popular – e muita leitura em voz alta – textos criados a partir dos dois modelos construtivos apresentados aqui de forma resumida. Ao compreender as muitas diferenças entre os dois, os estudantes poderão perceber que existem discursos mais, ou menos, marcados pela oralidade e que isso tem implicações; que discursos podem ser construídos e manipulados; que podem ter objetivos diferentes; que podem recorrer a diferentes recursos e procedimentos; que podem expressar assuntos humanos importantes; que podem ser fruto de padrões e visões de mundo não coincidentes e por aí vai. Muitos deles, depois do contato com os diferentes discursos e seus recursos, talvez até se tornem leitores [e para sempre!].
Ricardo Azevedo (São Paulo, 1949), escritor e ilustrador paulista, é autor de muitos livros para crianças e jovens, entre eles Um homem no sótão (Ática), A casa do meu avô (Ática), Aula de carnaval e outros poemas (Ática), Trezentos parafusos a menos (Moderna), Livro dos pontos de vista (Ática), Armazém do Folclore (Ática), Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões (Ática), O livro das palavras (Editora do Brasil), O sábio ao contrário (Editora do Brasil), Contos de enganar a morte (Ática), Chega de saudade (Moderna), Contos de espanto e alumbramento (Scipione), O livro de papel (Editora do Brasil), Ninguém sabe o que é um poema (Ática), Feito bala perdida e outros poemas (Ática), O leão da noite estrelada (Saraiva), Contos e lendas de um vale encantado (Ática), Fazedor de tatuagem (Moderna), O chute que a bola levou (Moderna), O motoqueiro que virou bicho (Moderna), Fragosas brenhas do mataréu (Ática), O livro das casas (Moderna) e Caderno veloz de anotações, poemas e desenhos (Melhoramentos). Ganhou várias vezes o Prêmio Jabuti com os livros Alguma coisa (FTD), Maria Gomes (Scipione), Dezenove poemas desengonçados (Ática), A outra enciclopédia canina (Companhia das Letrinhas), Fragosas brenhas do mataréu (Ática), entre outros prêmios como o APCA. Tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México, França e Holanda e textos em coletâneas publicados na Costa Rica. Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor da tese Abençoado e danado do samba – Um estudo sobre o discurso popular, publicada pela EDUSP e vencedora do Prêmio Jabuti na categoria de Teoria e Crítica Literária, em 2014. Pesquisador na área de cultura popular. Professor convidado em cursos de especialização em Arte-Educação e Literatura. Tem dado palestras e escrito artigos, publicados em livros e revistas, abordando problemas do uso da literatura de ficção na escola.