Sobre o inapropriável direito à apropriação do desconhecido
Ouvi falar pela primeira vez sobre o Guugu Yimithirr en passant, em um ensaio do linguista Guy Deutscher publicado na Folha de São Paulo. O texto tratava da incrível propriedade do idioma, originário de aborígenes do norte da Austrália, de prescindir de coordenadas egocêntricas – palavras como “frente”, “trás”, “direita” e “esquerda”. Tal peculiaridade força seus falantes a orientarem-se constantemente em relação aos pontos cardeais – como em “você poderia ir um pouquinho pra sul, por favor?”, ou “pegue aquela caixa no oeste da estante?” –, o que lhes concede um senso peculiar de localização geográfica.
Afora isso, não sabia mais nada sobre o idioma até consultar a Wikipedia há alguns dias atrás e descobrir que ele tem apenas 775 falantes nativos, quase todos os quais vivendo na comunidade de Hopevale, em Queensland. Isso não impediu, porém, que eles cumprissem um papel decisivo na minha relação pessoal com a literatura.
Era o verão de 2011, e eu penava com uma separação que se arrastava há mais de um ano, precipitada pelo meu exílio no Rio de Janeiro, e com a sensação de que a dor daquela diáspora só terminaria com o retorno à terra natal. Uma sensação infelizmente não partilhada por quem tinha ficado para trás – o que fazia com que o movimento de volta fosse possível no plano geográfico, mas não na geometria afetiva. Ainda assim, eu não via saída senão pensar minha trajetória como um círculo que acabaria por retornar ao local de origem, e sofrer porque só eu parecia enxergar o mundo naquele sistema de coordenadas particular.
Dessa experiência de exílio, somada à memória casual da existência do Guugu Yimithirr, nasceram os Yualapeng, uma tribo imaginária da Amazônia Boliviana cuja única palavra para expressar deslocamento é “volta”. Dos Yualapeng nasceria “Uok Phlau”, um conto que descreve as desventuras de um linguista europeu que tenta alterar as concepções geográficas da tribo. De “Uok Phlau” nasceria o Dicionário de Línguas Imaginárias, um livro que veria a luz seis anos mais tarde, repleto de novas tribos inexistentes como os Skali, uma etnia de pastores de renas siberianos com o idioma mais conciso do planeta. E de tudo aquilo nasceria a ressignificação de uma dor – ou de várias – e um caminho para existir de um outro jeito.
Muito tem se criticado a exotização de povos indígenas na literatura e na arte, e a tendência das civilizações humanas de apropriarem-se de culturas alheias de forma romantizada, simplista ou colonialista. Dito isso, reduzir a necessidade de um Outro idealizado a uma questão política é uma abordagem um tanto quanto rasa – até porque a apropriação da cultura alheia não respeita regiões, fronteiras ou relações de poder. Europeus olhando para a América, cubanos olhando para a Flórida ou brasileiros olhando para a Europa compartilham a necessidade de um espaço com vazios a serem preenchidos – um “lugar desconhecido ao oeste” que habita mesmo os mapas de lugares imaginários como a Terra Média de Tolkien.
Usar tais espaços, por vezes, é um recurso literário inevitável – como escreve Vargas Llosa, Borges usava o exotismo como pretexto para, através da ignorância do leitor, fugir do mundo real e escorregar para dentro do fantástico. Dentro desse repertório, Tlön, a Babilônia ou o extremo sul da Argentina cumprem um papel semelhante de lugar desconhecido em que possa florescer o imaginário. Dentro e fora da literatura, bilhões de pessoas fazem uso de culturas alheias com o mesmo fim, e não parece haver opção senão entregar-se a essa necessidade humana fundamental.
Com o avanço da política identitária, a vilificação da “apropriação cultural” como pecado pós-moderno tem criado polêmica sobre a validade de apropriar-se de elementos de outras culturas sem o devido “conhecimento de causa”. Para mim, nada poderia soar mais desavisado: é precisamente a falta de conhecimento que dá ao exótico seu apelo, e é nela que reside sua potência transformadora. É no que a cultura alheia tem de desconhecido, afinal, que existe o espaço para que cada um se aproprie dela à sua maneira. E se nos sentirmos obrigados a respeitar o lugar de fala dos incontáveis discursos que nos cercam, é provável que nunca consigamos combiná-los em um idioma pessoal que transcenda a cultura ao nosso redor.
Dito isso, é inegável que “Uok Phlau” possui uma leitura relativista que agrada o gosto pós-moderno – no fim das contas, os índios levam a melhor sobre o linguista europeu, que é forçado a conceder razão à geometria dos nativos. Confesso que nunca tive qualquer intenção de correção política com isso: pelo contrário, o desfecho era apenas natural um momento em que eu enxergava o mundo como um Yualapeng, enquanto todos à minha volta faziam o papel de linguista. A vitória dos índios era apenas a celebração de minha própria teimosia – e consciente de sua futilidade, eu tampouco hesitaria em destinar os Yualapeng ao genocídio para puni-la.
Quem tem razão na história, porém, é o que menos importa. O que importa é que existam múltiplas línguas, geometrias e formas de ver o mundo. E que, no nível individual, qualquer um possa se apropriar delas de forma a inventar a sua. Não porque seja necessário chegar a uma forma mais certa. Mas porque é necessário poder chegar a uma forma mais própria – o que significa escapar do pensamento dominante no meio em que se vive. E se apropriar-se da língua ou da cultura de uma tribo do outro lado do planeta pode ajudar nesse movimento de fuga, então que assim o seja.
Curiosamente, “Uok Phlau” teria sua primeira publicação em alemão – uma língua que eu compreendo quase tão pouco como o Guugu Yimithirr. Por conta do lançamento da coletânea Wir sind bereit, e de um auxílio da Fundação Biblioteca Nacional, eu compareceria junto com outros autores brasileiros a uma turnê literária em que sentávamos por horas assistindo atores lerem nossos textos no idioma local para plateias concentradas. O que curiosamente fazia com que eles pertencessem a todos ali, menos a nós mesmos, que já não entendíamos palavra alguma deles.
O estranhamento da experiência me marcaria o suficiente para dar luz a outro conto, “Esquecendo Valdès”, em que um acadêmico que forja a história dos Yualapeng lida com a transformação de sua ficção pessoal em realidade. O enredo não é acidental: mais de uma vez alguém me perguntou se a tribo de fato existia – e se frustrou com a admissão de que ela era apenas uma mentira deslavada. Mas o fato dela haver existido por alguns minutos para alguém representa um fluxo curioso: uma ficção apropriada de um idioma real na Austrália tomava pé como realidade nos confins da América do Sul no imaginário de um alemão desavisado. E um conto que tinha sido escrito como um presente para uma única pessoa, como metáfora de uma história íntima, se transformava em uma narrativa em uma língua estranha, que já não dizia respeito a mim ou ao seu destinatário original.
E como bom Yualapeng que sou, não consigo deixar de sorrir ao ver ali o momento em que a própria literatura completava sua trajetória circular. O momento em que uma ficção pessoal roubada de um idioma longínquo era apropriada de volta pelo mundo como uma história real que já não me pertencia. E ao ouvir um agradecimento em uma língua estranha por tê-la escrito, eu não poderia deixar de repassar tal gratidão a um punhado de aborígenes que sequer conheço. Nem de pensar que essa generosidade mútua entre pessoas e mundos distintos, ao servirem de veículo para algo maior do que si mesmos, é exatamente o que a literatura deve ser.
Olavo Amaral (Porto Alegre, 1979). Vive no Rio de Janeiro. É autor de Estática (IEL-RS, 2006) e Correnteza e escombros (7Letras, 2012), este último um dos finalistas do Prêmio Açorianos 2012. Em 2013, foi vencedor do Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães com textos que compõe o atual Dicionário de línguas imaginárias. Além dos livros publicados, participou de diversas coletâneas e sites literários como Argumento, Cronópios e Bestiário, tendo sido recentemente incluído na antologia de jovens autores brasileiros Wir Sind Bereit (Estamos Prontos) (Verlag Léttretage, 2013), lançada na Alemanha. Na área de cinema, foi roteirista de Perro en el Columpio (Barcelona, 2008), premiado como melhor drama e roteiro no Festival 15/15 (Melbourne, Austrália), dirigiu A Porta do Quarto (Porto Alegre, 2012) e atualmente finaliza Depois da Poeira, seu segundo curta-metragem como diretor. Além de escritor, é médico e pesquisador em neurociências na UFRJ.