Vislumbro o horizonte rasgado através da janela do carro, minhas mãos espalmadas à frente do rosto e um olhar de revés contra a massa espessa e vibrante que fere meus olhos. O calor dilui a paisagem tornando tudo inconstante enquanto a silhueta tremeluzente de meu pai vem em nossa direção. À medida que se aproxima, é como se a cada passo dado o chão crepitasse, ardendo, uma marcha fúnebre sobre o campo amarelo, dilacerando as folhas secas dos pés de milho que se partem a cada passada. Uma infindável extensão de nada entretecendo a paisagem árida de uma safra castigada pela falta de chuva. A camisa molhada de suor no torso, o calor exposto nas têmporas do rosto vermelho, a história do campo contada em cada um dos pequenos sinais na pele, do embate entre as colheitas e a geada, de um outro clima, de outro tempo, de outro pai. A lágrima que se transfere dos olhos verdes marejados para as mãos calejadas seguindo um percurso estranho, procurando seu caminho pelos sulcos até encontrar o solo estéril. Schnell, Mann! ⎯ grita minha mãe jogando a cabeça para fora, pela janela do carona. Beeilen Sie sich! Sabe que não gosto de chegar atrasada na missa ⎯ diz olhando para o delicado relógio no pulso. De dentro do portaluvas, alcança uma pequena toalha para que meu pai enxugue o rosto. Quando ele ocupa o assento do motorista, seus olhos encontram os meus através do retrovisor e antes de dar a partida, põe sua mão direita sobre as mãos de minha mãe que descansam, juntas, sobrepostas sobre as pernas. É domingo.
Ao chegarmos na igreja, ouço o “Guten Morgen, Schäfer” repetido à exaustão na pronúncia cadenciada do Hunsrückisch. Um cumprimento carregado de reverência, como se o próprio cumprimentar fosse em si uma liturgia, em que cada movimento desempenha uma função específica a partir do seu significado. Primeiro o estender de mãos e a busca pelo ângulo correto na troca de olhares, nem alto demais a ponto de parecer insolente, tampouco baixo demais de forma que soe como falta de confiaça em si mesmo. A seguir, o encontro e aperto das mãos que se buscam com firmeza, como se tal ato selasse um acordo tácito entre homens que acontece desde sempre. Finalmente, o bom dia carregado de respeito e admiração, uma lufada de ar que vem do íntimo e faz reverberar as cordas vocais e uma ancestralidade que lhes coloca, os homens, numa espécie de cumplicidade atávica. Entramos.
Avançamos pelo corredor central da nave em busca de um lugar mais à frente. A via crucis do pecado. Imagino uma linha invisível posicionada exatamente no centro do corredor, dividindo-o em dois. Um meridiano separando hemisférios opostos: eles e eu. Se me desvio, tendendo mais para algum dos lados em minha caminhada, logo sinto alguma perna vacilante que, discretamente, escapa da linha dos bancos, roçando nas minhas. Na passagem para a chegada até os lugares vazios, sinto o roçar áspero das mãos que no percurso para ajeitar um chapéu ou secar o rosto encontram meu corpo no meio do caminho. Sentamos.
Os sinos tocam, anunciando a entrada do pastor. Sua caminhada é diferente da minha, mais altiva. Desperta outros tipos de olhar e parece carregar consigo uma força invisível que vai baixando cabeças conforme passa. Com o hinário em mãos, acatamos respeitosamente seu convite. Hino duzentos e quarenta e cinco. Ao sinal do organista, cantamos em coro e comoção. Ouço o clamor do bom Pastor / Pelo deserto assolador / Seus cordeirinhos a chamar / Mui desejoso de os salvar / Vai buscar, vai buscar / Vai buscar meus cordeirinhos, vai! / Vai buscar, vai buscar / Traze-os para o meu aprisco.
O pastor roga pela presença do Espírito Santo através da invocação, depois a confissão dos pecados e finalmente a absolvição dos mesmos, marcada por nosso sim retumbante em coro. Deus escreve certo por linhas tortas – afirma o pastor. Pede que confiemos nos desígnios do pai, pois ele sabe o que faz. Relembra que nos momentos de maior adversidade, nas piores provações, também estão guardadas as maiores oportunidades de transformação. Meu pai acena com a cabeça, concordando. Nos conformamos.
Depois do culto, na frente da igreja, vislumbro nitidamente um outro meridiano, embora esse não tenha sido criado por mim. De um lado, um dialeto único que é comum aos gêneros e um outro, mais íntimo, que só mulheres são capazes de compreender. Acompanho com certa distância as risadas, os humores, a troca de solidariedade implícita. Meu olhar aterrissa no outro hemisfério, onde meu pai gesticula, retira o boné e volta a colocá-lo dizendo de forma ríspida – nicht hier – ao homem com quem conversa, de forma discreta, mas, claramente, com ânimos alterados. Prosseguem, e o homem aponta o dedo bem em frente ao seu rosto. Wir reden später – responde meu pai virando as costas e saindo antes mesmo de acabar a frase.
No carro, uma típica marchinha alemã. Minha mãe desliga o rádio resmungando. Meu pai o liga novamente. Wie kann man Musik hören? – ela braveja. Ruhige Frau – diz meu pai. E outra vez, seus olhos buscam os meus no retrovisor. Sorrio, mas ele não sorri de volta. Em casa, de dentro do quarto, ouço uma briga abafada, entrecortada. Minha mãe sai antes, batendo a porta, os olhos marejados. Meu pai logo em seguida, com um expressão severa. Dormimos.
Acordo com a voz exaltada de meu pai ao telefone, com meu tio. O diálogo é tão rápido e o dialeto parece tão arcaico que eu mesma tenho dificuldade de compreender tudo. Sento-me na cama e me esforço para ouvir com atenção.
O trator, do lado de fora, não ajuda. Escuto de forma entrecortada, palavras isoladas, kredithai, schuld, darlehen, undankbarkeit, familie e, finalmente, o som do gancho batendo com força contra a base do telefone. Saio do quarto, dou bom dia. Nenhum deles responde. Ich sagte ihm, er würde nicht leihen! – diz minha mãe. Meu pai apenas levanta a mão espalmada dando as costas a ela e pegando a chave do carro. Wo gehst du hin? – ela pergunta. Ao banco – ele diz, em português claro, olhando para mim com uma expressão que, agora, me parece temerosa. Finalmente entendo o motivo da tensão, o homem na igreja. E a partir desse entendimento, o tempo parece se deter bruscamente, consumindo vagarosamente a manhã, a tarde e se resumindo ao retorno, noturno, em que os olhos verdes desanimados e o hálito do álcool são toda a resposta que temos e, nem por isso, é menos esclarecedora. Com medo, abro a Bíblia. Salmo vinte e três. O Senhor é o meu pastor e nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma. Então, ao longe, o som de uma moto me arranca da leitura. Ouvimos todos, atentos. Claramente se aproxima. Pela janela, vemos um motoqueiro e um carona parados com certa distância, olhando na direção da casa. A intenção parece ser intimidar, já que permanecem assim por algum tempo, falam algo entre si e vão embora. Meu pai me chama a meu quarto. Olho para minha mãe, como quem pede aprovação, meio sem saber direito o que vai acontecer, meio que intuindo algo. Ela aprova com um maneio de cabeça. Gott verzeih mir für sie – diz meu pai. E então começa a falar dos sacrifícios que precisou fazer pela família durante a guerra e ao longo da difícil vida no campo, lá, e aqui. Revela quanto deve ao homem com quem discutia na igreja, único recurso ao qual foi possível recorrer depois de duas safras consecutivas sem chuva. E de como o pagaria contando com a colheita atual, também fracassada. Estamos ambos sentados em minha cama, ele coloca suas mãos calejadas sobre as minhas. Pergunta até onde eu iria para salvar nossa família da ruína, para proteger minha mãe e eu mesma. Digo que iria longe, ao passo que ele responde que talvez fosse preciso ir além. Então lembro das pernas vacilantes na missa, aos domingos, das mãos ásperas que, nada acidentalmente, encontram meu corpo de passagem. Lembro dos professores na escola, de meus primos, dos homens que trabalham com meu pai, da forma como todos eles me olham. E então começo a chorar, porque sei que já estou decidida, porque sei que não quero carregar nos ombros a responsabilidade de algo que venha a acontecer com nossa família. E o que mais dói, talvez, seja o fato de que sei que embora meu pai perguntasse até onde estou disposta a ir, sei que minha resposta não mudaria nada. Então, respondo com um maneio de cabeça. Es ist von unserer Familie – ele me diz, beijando minha testa e saindo. Adormeço. Tiro minhas roupas de forma que minha pele parece assumir os tons da paisagem no meu entorno. Aromas molhados emergem de não sei onde. Mergulho em um rio. Me espanto diante de minha própria beleza, intocada, enquanto meu corpo adquire formas alongadas no contato com o hálito fresco da água que me purifica. E então, “depois destas coisas, vi quatro anjos que estavam sobre os quatro cantos da terra, retendo os quatro ventos da terra, para que nenhum vento soprasse sobre a terra, nem sobre o mar, nem contra árvore alguma”. Adormeço dentro do sonho.
O dia seguinte se arrasta com o peso da expectativa, diante do espelho, perante o reconhecimento de ser apenas uma moeda de troca. No final da tarde, um carro buzina em frente a nossa casa. Meu pai me dá um abraço que eu não retribuo. Minha mãe, vejo apenas quando já saí de casa e olho para trás. Está na janela e fecha a cortina assim que me viro.
***
Du bist schön – diz o homem a quem meu pai deve. São as únicas palavras ditas antes que comece a tirar minha roupa e a sua.
A camisa molhada de suor que ele joga no chão. O calor exposto nas têmporas do rosto vermelho. A história de uma vida sórdida contada em cada uma das cicatrizes, do embate entre credores e devedores.
Cheira meus cabelos e os puxa com força para o lado. Enfia a língua úmida e áspera em minha orelha.
«Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo».
Aperta minhas bochechas com força, abrindo minha boca que recebe sua língua em rotações violentas. Sinto o hálito da cerveja. Com as duas mãos sobre meus ombros, pressiona para que eu me ajoelhe.
«A tua vara e o teu cajado me consolam».
Na cama, abre minha pernas com movimentos bruscos, como quem ara a terra seca. Enfia a língua em minha boca outra vez e sinto uma dor inominável.
«Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda».
Arfante, suado, ele desaba sobre mim, pressionando meu peito de forma que quase não respiro. Então, uma ânsia me toma de assalto enquanto ele sai de dentro de mim com os olhos vidrados e o corpo enorme se retorcendo em espasmos.
«Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias».
***
Guten Morgen – diz meu pai sorridente. A mesa do café posta, minha mãe preparando o mate. Meu pai olha pela janela com o semblante de quem tem esperança renovada. Os dias seguem. É domingo outra vez. Na igreja, meu pai ouve ao culto com atenção. Suas mãos calejadas estão sobre as mãos delicadas de minha mãe, que descansam juntas, sobrepostas sobre as pernas. Na saída da missa, somos pegos de surpresa. Chove torrencialmente.
André Timm (Porto Alegre, Brasil). Insônia, sua estreia na literatura, foi menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura. Com o romance Modos Inacabados de Morrer, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2017 e vencedor da Maratona Literária da editora Oito e Meio. Ainda em 2017, fez parte das coletâneas Língua Rara (editora Outsider); Cem anos de amor loucura e morte (editora Moinhos); E Nosotros (editora Oito e Meio). Em 2018, venceu o Prêmio Off Flip, concurso literário da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty.