O argumento do Lobo Larsen sobre a irrelevância da vida. “A vida é sem valor, exceto para si mesma.” (O Lobo do mar, Jack London). Não sei se ele tirou isso de Nietzsche, desconfio que sim. A lógica é poderosa, na medida em que são os homens que atribuem valor à vida, seja à dos outros, seja à própria. Por outro lado, a vida viceja pujantemente (expressão minha). O que mais há no universo é vida. Quase tudo ao nosso redor vive, ainda que nossos olhos sejam incapazes de enxergar todas as formas de vida que nos circundam.
Eu gosto dessa idéia: já pensou se cada elemento de vida correspondesse a uma luz visível e intensa, que nossos olhos pudessem enxergar? Ficaríamos cegos pela luz, não escaparíamos em lugar algum. Quantas bactérias, micróbios, micro-organismos estão agora mesmo sobre esse teclado de computador, sobre essa mesa, sobre esse livro, sobre a estátua de Cristo, sobre minha cama? Milhares? Milhões? Bilhões? Imagine a cegueira, imagine quanta luz branca não atingiria nossos olhos! A vida viceja com pujança, mesmo que nos esqueçamos disso na maior parte do tempo.
Então o personagem do Lobo Larsen, de modo insidioso, nos diz: se fosse para julgar o valor da vida, ela seria obviamente barata, muito barata. Ela surge e desaparece no universo ao longo dos séculos, em grandes quantidades, quantidades incontáveis. É lei da oferta e da demanda pura: quanto mais tem menos vale. Argumento forte, com o qual a razão se confunde, não encontra solução. Não que se concorde com ele, porque é puramente racional e não leva em consideração os instintos compassivos dos homens, que nada têm a ver com ele.
E o que é o valor que o homem atribui à sua vida ou à dos outros? Um valor exagerado, quase sempre. E o que é o valor, senão uma ideia sobre o que constitui a essência do homem? E o que é uma ideia, senão um ídolo? (expressão de Nietzsche). E quem te garante que uma ideia é verdadeira se ela é cria do espírito humano? Por isso, o filósofo queria destruí-las todas com seu incansável martelo. Para pôr o que no lugar? O amor fati, talvez. A experiência de amar a vida em sua totalidade, a cada instante, porque fazê-lo significa não agir pautado por ídolos, por ideias e ideologias. Significa ser, de fato, livre.
Acho tudo isso fascinante. O problema é que não dar valor à vida é considerá-la um valor. Um valor ínfimo e irrelevante, mas ainda assim um valor. Não somos capazes de escapar dessa dualidade mental. Então quando o Lobo defende que não se deve ser altruísta, age conforme uma ideologia e assim se distancia de Nietzsche, que dizia: se vocês procuram um guru que lhes ensinará alguma coisa, vieram ao lugar errado. Ou algo do gênero.
É interessante observar essas pessoas que, como o Lobo Larsen, menosprezam o valor da vida porque não podem medi-lo. Ou que negam a existência de Deus porque não encontram sentido no universo, a não ser na luta em que o mais forte sempre vence o mais fraco. Não é que eu discorde deles, porque, se discordasse, incidiria na crença oposta, que também é fruto da dualidade da mente – que também, portanto, seria um ídolo. Crer na irrelevância da vida ou na sua irrelevância dá no mesmo; crer que Deus existe ou que Deus não existe dá no mesmo. São ideais que se apresentam como verdades, como dogmas. Veja um ateu dando uma palestra sobre a não existência de Deus. Observe sua energia. É ou não um fundamentalismo igual ao do religioso mais radical?
Parece que Sócrates continua sendo o mais sábio dos filósofos, não fosse o deslize de dizer que sabia de algo (no caso, que não sabia de nada). Nós não deveríamos dizer (caí eu também na armadilha? não sei), como ele, “só sei que nada sei” (ou algo do gênero). Deveríamos dizer: “nem sei se sei de algo”. Sim, a suspensão do juízo. Nada de novo. As coisas que sabemos são aquelas que podemos descobrir pelo método científico (e olhe lá!), relativas ao mundo físico. Se a vida tem valor e qual é o seu valor é uma questão inútil para a descoberta do ser, é uma dessas oposições kantianas que a razão é incapaz de responder, a não ser criando critérios próprios, não universais.
Então onde ficamos nisso tudo? Eu diria que a melhor solução (caí, definitivamente caí) continua sendo a mente aberta: “não sei, mas eventualmente posso descobrir.” Quem sabe? Enquanto não sei, melhor não julgar nada apressadamente, nem minhas ações, nem as ações dos outros, porque desconheço o que há em mim e o que há no outro. Sequer sei quem sou. Uma forma de vida, talvez. O que mais, além disso? O que eu faço, o que eu sonho, o que eu digo, minhas ações, meu amor, meu medo? Há de se concordar que já saí da vida ao considerar essas hipóteses. Já abandonei esse elemento indefinível e sem contradições, porque nele pensamento não há. A contradição está associada ao pensamento e às experiências sensíveis. O Lobo Larsen é um animal preso na própria armadilha do pensar e do julgar. O pior é que, como a maioria dos homens, acredita que se encontra além dos muros, que se libertou porque, com tamanha arrogância, desvenda o mundo para os cegos. Pergunto-me quantos cegos não guiam cegos nessas paragens? E quantos não caíram ou cairão ainda em infinitos buracos?
Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.
Um comentário sobre ldquo;Filosofia de lobos do mar, por Caio Lobo”