“Fotografar mulheres é diferente de fotografar homens?”. Meu amigo indiano me perguntou isso ao ver uma série de fotos que fiz em Varanasi, na Índia. “Sim“, respondi, “assim como é diferente fotografar – mulheres ou homens – na Índia, no Brasil, no Benim“. Em minha mais recente viagem à Ásia, decidi lançar a mim mesma o desafio de fotografar apenas mulheres. Foi um desafio e tanto. Cheguei a pensar em desistir. E por isso mesmo a pergunta do meu amigo indiano (e fotógrafo), sem que ele soubesse, foi tão pertinente. Porque, sim, é muitíssimo diferente fotografar mulheres e homens na Índia.
Fotografar gente já é difícil. Sempre. Pelo menos pra mim. E foi por essa razão que comecei a fazê-lo. Porque havia o embaraço. Medo de fazê-lo sem a permissão e receber uma bronca, uma agressão. Excesso de dedos pra perguntar se poderia fazer a foto. E, aos pouquinhos, mineiramente, fui tentando e foi funcionando. Continuo achando difícil. Continuo fazendo.
Pois bem, partindo dessa premissa, em toda parte percebo que é mais fácil fotografar homens, e acredito que isso não tenha nada a ver com o fato de eu ser mulher. Em todos os lugares onde já fotografei – e no planeta Terra, de forma geral –, o patriarcado impera e acredito que seja por isso que os homens se sintam mais confortáveis em serem eleitos pra foto. A minha experiência é de que sempre é mais difícil chegar perto das mulheres, seduzi-las a se deixarem fotografar, levá-las a quererem ter seu retrato feito; na Índia, inclusive. Mesmo sendo eu uma mulher que se aproxima com a câmera. Talvez porque elas não queiram disputar o centro da atenção com os homens. Talvez isso gere problemas pra elas depois. Talvez porque mulheres sejam vistas como propriedade de alguém (do pai, do marido) e fotografá-las requereria autorização de um deles. Talvez, talvez, talvez.
Tenho acompanhado alguns trabalhos pela internet e existem fotógrafas, hoje, que conseguem acesso a outras mulheres – em países onde a abordagem por uma pessoa de outro sexo seria mais problemática – e isso tem sido notado e valorizado na imprensa internacional. Em casos como esses, por exemplo, acredito que o gênero da fotógrafa seja imprescindível pro êxito da missão – além, naturalmente, do tempo dedicado a ela. Quando fotografo mulheres (e homens) em minhas viagens, na maior parte das vezes eu estou de passagem e paro uma pessoa na rua pra fazê-lo ou visito um lugar, uma única vez. Em muitas delas, eu peço permissão pra tirar a foto. Se quero um retrato, preciso que o/a modelo me olhe através da lente. Em outras poucas, no entanto, passo um tempo com elas.
Recebi um aprendizado instrumental de um fotógrafo: não se acanhe em deixar o/a modelo esperando. Como eu só fotografo com câmeras analógicas e não sou assim, digamos, uma exímia fotógrafa, às vezes deixar tudo pronto pro disparo me toma alguns desconfortáveis segundos. Desconfortáveis pra mim e pra quem espera. E esse desconforto já me levou a abandonar a ideia daquela foto, a fingir que a tirei ou a fotografar de qualquer jeito, sem foco ou medição de luz correta, só pra acabar com aquela angústia. Mas escolhi ouvir esse fotógrafo. Deixa esperar. Deixa. Aprenda a conviver com o desconforto. Você e ela.
E uma hora, mágica, a pessoa desarma. Hoje, por vezes, já estou com tudo pronto pro disparo, mas continuo esperando, fingindo ajustar qualquer coisa. Cada foto numa câmera de filme é preciosa. Não quero ter pressa. Só disparo quando chega o momento sublime em que a pessoa deixa de posar. Mesmo que ela pisque o olho ou mexa a cabeça. E, nessa espera, fui eu também perdendo um pouco do medo, me desarmando. Porque acontece algo ali naquele instante, através da lente. Uma forma de verdade em que ambas nos revelamos. Eu deixo de posar de fotógrafa. E nós nos vemos. Duas mulheres.
Uma mulher, Dot Fisher-Smith
Fui à ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), na Avenida Paulista, e fotografei algumas mulheres dali, uma ideia que venho trabalhando. Uma delas, que não quis ter sua foto tirada, me perguntou por que eu só fotografava mulheres. Respondi que os homens já ocupavam muito espaço, em todas as esferas. Ela esboçou um princípio de sorriso, triste. “É. Quem toca a vida são as mulheres mesmo“. Concordei com a cabeça e imediatamente lembrei-me do que me disseram certa vez: “você só pode ter sido criada por um matriarcado. Tem uma força aí que é do feminino“.
É verdade. Fui criada, inspirada, motivada, guiada, moldada por várias mulheres, não só por minha mãe. Tenho inclusive dois pais, mas minha família é completamente matriarcal, orbitando ao redor da figura centrípeta da minha avó, hoje entrando na casa dos 90 anos. As mulheres desse clã mineiro sempre me transmitiram uma segurança terrena, um pilar que nasce lá no fundo da terra. Mulheres são “ponta firme”; mulheres seguram a onda e fazem o barco tocar pra frente. Nunca senti dentro da nossa tribo que se esperasse menos de mim, ou de qualquer uma de nós, porque somos mulheres. Muito pelo contrário. As incertezas vinham era dos homens, com quem nem sempre se podia contar. Ali, quem toma todo o espaço somos nós. E nós somos numerosas. Assertivas. Todas parecidas, filhas de irmãs gêmeas.
No final de 2014, viajei pelo Nepal com um grupo de escritores, e dentre eles havia Dot Fisher-Smith. Essa americana, na época com 86 anos, foi minha parceira mais animada de trilhas e aventuras. Dot caminha com o vigor e a firmeza de uma menina, do alto de sua pequena estatura. Carrega sua própria mochila de acampamento nas costas, detesta ser paparicada, tem a pele toda enrugada e um olhar inescapável. A história não gosta que se chamem mulheres de geniais ou brilhantes, mas se Dot não for iluminada no sentido budista, está quase lá. Ela já viveu toda uma vida e segue entusiasmadíssima. E enquanto escrevo esse texto, ela está viajando pelo Deserto do Saara de jipe. Juro.
Dot nasceu em 1928. Foi monja zen-budista por anos; ativista ambiental é até hoje. Posou pelada na capa de uma revista quando já tinha mais de 80 anos. Acorrentou o próprio pescoço a uma escavadeira pra impedir a devastação de uma floresta ameaçada, próxima à região em que vive, no estado do Oregon, nos Estados Unidos. Atravessou o país de carro com o filho e a filha pequenos pra fugir do primeiro marido, com quem morou em diferentes países, inclusive no Irã. O filho já se foi. Ela se casou de novo. Hoje tem netos, bisnetos e até tataranetos, mas não apresenta nenhum embaraço visível em dizer que não recomenda a maternidade, que a vida já é uma jornada incrível o bastante por si só e que ela mal dá conta de si mesma, que acredita não ter sido uma boa mãe e que, se soubesse na época o que sabe hoje, não teria tido filhos. E também que preferia ter passado sua vida ao lado de uma mulher, não de um homem.
É viajante praticante há mais de 60 anos e viaja sozinha até hoje. Com quase 80 anos, completou uma volta em torno do Monte Kailash, na região de Ladaque, na Caxemira, cobrindo 3 dias de trilhas e dormindo ao relento, no alto dos Himalaias. Continua acampando, todos os verões, nas montanhas da Califórnia. Mas, como ela mesma diz, agora tem preguiça de ficar três meses sozinha por sua própria conta no mato, carregando tudo que precisa e colhendo frutas, como costumava fazer até os 70 e tantos anos. Ela se declara uma caçadora-coletora, uma primitiva, terrena. Hoje, limita-se a acampar por uma ou duas semanas com a neta de 20 e poucos anos que divide o peso dos mantimentos e das barracas com ela. Se alonga todos os dias, fica pelada com naturalidade infantil, tem um arsenal de poesias memorizadas na íntegra, desloca-se de bicicleta por Ashland, onde vive, até no verão de mais de 40ºC e pinta grandes telas em seu ateliê caseiro.
Se morasse aqui, decerto estaria acampada, ocupando a Paulista com as outras mulheres que fotografei. Dot tem alma sertaneja. É o centro de sua tribo matriarcal. Só de pensar nela no meio do deserto africano, um sorriso se abre, irresistível, em meu rosto aqui em São Paulo. Depois dela, envelhecer ganhou outra textura pra mim, como os sulcos em seu rosto. As linhas do possível se borraram. Outra fome de vida me invadiu; uma nova e libertadora sede de ser mulher como eu bem entender. O feminino confirmou-se uma força.
Maria Bitarello é uma escritora, tradutora e jornalista mineira radicada em São Paulo desde 2012. Mestre em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), integra a companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona. Tem dois livros de crônicas lançados: “Só sei que foi assim” (La petite ferme, 2014) e “O tempo das coisas” (In Media Res, 2018).