De nada adiantava metralhar o copo de vidro com a colher de metal. Os presentes não se calavam.
– “Parecem crianças!” – pensou o Presidente.
Então começou a bater com o talher na própria mesa. Depois associou a mão que lhe sobrava ao gesto, até que, por fim, a duras penas, fez-se razoável silêncio, entremeado de cochichos e risos que ele fingiu não notar:
– “Silêncio, por favor!” – disse com ar paternal – “temos trabalho a fazer!”.
A secretária entrara e servia o café, perguntando a cada um:
– “Açúcar? Adoçante? Sem açúcar?”.
Mulheres puxavam as saias para baixo e ajeitavam os cabelos; homens encaravam as gravatas, examinando sua retidão. Ouviu-se um deles tomar o café do seu modo habitual e nada educado, provocando com os lábios o ruído que produz um canudo quando se tenta sorver as últimas gotas de um copo de refrigerante. Alguém tossiu.
– “Bem, vejamos! Na semana passada, nos reunimos para discutir o acerto de nossas ações no campo da telefonia e constatamos que nossos lucros cresceram”.
Foi a deixa para que todos aplaudissem. Aplaudiram.
– “Hoje discutiremos nossas estratégias virtuais. Passo a palavra a nossa gerente da área, Dra. Camila, desde já lhe perguntando se os lucros cresceram ou diminuíram”.
A mulher, de terno cinza-claro e elegante, cabelos presos e postura ereta:
– “Bom dia a todos! Sim, Senhor Presidente, os lucros aumentaram!”
Novos aplausos.
– “Embora, a depender da ação de que tratamos, haja certa oscilação”.
– “Tratemos das oscilações!”.
– “Muito bem! As ações bancárias, por exemplo”.
– “Seja mais específica, Dona Camila! Há pessoas aqui que não são de sua área”.
– “Refiro-me aos correios eletrônicos em que pedimos ao cliente atualizar sua senha ou, numa variante mais ousada, seus dados”.
– “Não estão dando certo?”
– “Sim! Sim! Mas os números não crescem…!”.
– “Devido a…”
– “Suponho que ao fato de que muitos dos nossos clientes não pertencem ao banco anunciado. Explico-me: enviamos um e-mail cujo título é ‘Bradesco: atualize sua senha’. Só que nosso alvo é cliente, digamos, do Banco do Brasil. Então ele enxerga imediatamente o [ ].”
– “Talvez devêssemos” – interrompeu um sujeito careca, o rosto avermelhando-se como um tomate – “tornar mais genérico o título”.
– “Por exemplo?”
– “Em vez de dizer o nome do banco” – continuou – “diríamos no título: ‘urgente: atualize seus dados bancários’”.
– “Hum! Talvez seja uma boa ideia, o que a Senhora acha?” – indagou o Presidente.
– “Podemos tentar, chefe!”
– “Tentemos! Continue!”
– “Bem, temos o aumento peniano”.
Um riso abafado correu pela sala.
– “Refiro-me à nossa chamada: ‘aumente seu pênis’”.
– “O que tem ela”?
– “Era um dos nossos carros-chefes. Sempre crescia…”.
Riu-se mais alto. O Presidente se irritou:
– “Senhores, por favor, o assunto é sério!”.
– “Como eu dizia” – continuou a Dra. Camila – “sempre houve crescimento (de lucros) nessa área. Não sei por que, mas vocês, homens, têm essa fixação doentia de ter o membro maior do que lhes conferiu a natureza, então era como vender pãezinhos. É bem verdade que metade da população (as mulheres, quero dizer) não faziam parte da nossa clientela, mas ainda assim obtínhamos lucros. Hoje esse setor está em queda. Não consegui ainda identificar o problema”.
Uma mulher de cabelos curtos, madura, que rabiscava desenhos incompreensíveis num papel timbrado, falou, quase de si para si mesma, sem levantar a cabeça:
– “Talvez as pessoas não estejam mais fazendo sexo”.
O que se sentara diante dela, observando-a atentamente, rebateu:
– “Talvez as mulheres exijam demais dos homens”.
– “Talvez o Viagra tenha resolvido qualquer complexo de tamanho” – palpitou um terceiro.
Talvez, talvez, talvez! As vozes agigantavam-se na sala. O Presidente se irritava. A funcionária que servia o café perguntou-lhe:
– “Com açúcar?”.
– “Não!” – respondeu secamente.
– “Tudo bem! Tudo bem! Quero soluções! Alguém tem uma ideia?”
O careca se remexia na cadeira, constrangido.
– “Manoel?”
Ele criou coragem:
– “Talvez nosso mercado esteja saturado. Quem sabe devamos mudar o foco da clientela”…
– “Como assim?”
– “Por que não tentar essa ação com um público oriental”?
– “E por que isso”?
– “Ora” – ficou vermelho novamente. Ajudaram-no:
– “Porque tem o pau pequeno”.
Gargalhada generalizada. A sócia mais jovem da empresa, Sônia, revoltou-se:
– “Preconceito!”
– “Preconceito, nada! Dado conhecido!”
– “Então quer dizer que todo oriental tem pau pequeno? É como dizer que todo negro tem pau grande”.
– “Só uma generalização, minha querida! Toda regra tem exceções. No capitalismo, trabalhamos com a regra”. “Imagine só o mercado asiático!”
– “Vocês são uns nojentos!”.
– “Puritana!” “Ô diabo desse politicamente correto…!”. “Vocês andam assistindo muito pornô”… “Então não tentemos essa ação na África!” “O mercado pornográfico só confirma a regra”. “Prejuízo na certa!” “Toda regra tem exceção, exceto essa regra de que toda regra tem exceção – que não tem exceção”. “Puta que o pariu!”.
Novamente o Presidente agredia a mesa: colher, mão, copo.
– “Minha proposta, Presidente, é que encaminhemos nossos e-mails sobre o assunto ao setor de traduções e tentemos o [ ] no exterior, em países orientais.”
Quem discorda levante a mão; quem concorda permaneça como se encontra! Aprovado!
A reunião acelerou-se. O item seguinte da pauta era o correio, cujo título anunciava ‘você nunca mais falou comigo’. Depois vieram ‘as fotos daquele dia’; ‘correios: objeto rastreado’; ‘viagra_cialis@online.can’; ‘informações de sua encomenda’; ‘sedex: 3ª tentativa frustrada’; ‘urgente: registro de ocorrência’; ‘pague sua multa’; ‘relatório de pendências atualizado’; ‘DETRAN débitos’; ‘hello’; ‘intimação judicial’, entre tantas outras iniciativas empresariais no campo virtual da Companhia [ ] LTDA. Fervilhavam ideias, aniquilavam-se empreendimentos fracassados, aperfeiçoavam-se empreitadas quase exitosas. As vozes, voando por cima da mesa, entrecruzadas, diálogos de ponta a ponta, disputas em pequenos grupos, deram vida à saleta do prédio, cujas vidraças imaculadas observavam, da altitude, os pequenos mortais a caminhar como formigas, muitos metros abaixo. Tinha-se a sensação de que, com os pés, poderiam ser esmagados dali mesmo, sem esforço.
Quando o clima se atenuou, o homem mais bem-vestido entre os sócios, com sua barba recentemente aparada e o olhar aguçado, propôs:
– “Poderíamos aproveitar o momento político atual”.
Instalou-se o vácuo, cadeiras rangeram. A coluna de uma das mulheres estalou alto. Os cafés remexiam-se nas xícaras, grandes ondas negras num mar traiçoeiramente tranquilo.
– “Poderíamos colocar” – continuou, os glóbulos a cintilar, como se estivesse perdido em sonhos de grandeza napoleônicos – “abaixo os [ ]”.
Então foi o caos. Um rapaz, que se mantivera em silêncio até aquele momento, levantou-se. Seu rosto fervia de raiva, destoando da camisa, onde um pequeno e sorridente pássaro brasileiro sorria:
– “[ ] é o caralho!” – gritou – “porque a Constituição Federal prevê…”
Gritaria incompreensível, argumentos da maior fineza:
– “Petralha”! “Coxinha”!
Raciocínios de fazer corar Schopenhauer.
– “Ladrão!” – se esgoelava um, ao que o outro rebatia, irretorquível:
– “Corrupto!” – Lógica de times de futebol, camisas de força com suas cores marcando o terreno da guerra, insultos, braços que queriam agarrar o inimigo do outro lado da mesa.
O Presidente, ele, esbaforido, tentando impor a ordem, cadeira caindo no canto, gola segurada, tentativa de soco, palavrões. Civilidade e inteligência de mãos dadas, com seu vigor de juventude.
O copo, sábio objeto, pôs fim à disputa: caiu com estardalhaço, espatifou-se em mil.
– “Porra!” – concluía o chefe em meio ao tumulto – “Que algazarra é essa? Estamos aqui para trabalhar, Senhoras e Senhores!… A coisa aqui é séria! Somos nós que fazemos crescer o PIB do país. Comportem-se de acordo! Falar de política, onde já se viu? Nosso assunto é dinheiro! Querem ganhar dinheiro ou não? O que nos importa o Homem das Neves ou a Senhora Vilma? À merda o Cunhão e o Bolsonbosta! Não são eles que vão por comida no prato de nossas crianças, pelo amor do Pai Santíssimo! Somos nós! Nós, isso mesmo, com o suor do nosso rosto e a mediocridade de nossa clientela!”.
O discurso fazia efeito: camisas amarelas, gravatas vermelhas, calças azuis, todos se sentavam, arrumando suas roupas, proferindo os últimos impropérios em voz baixa.
– “Onde já se viu?” – repetia sem cessar o Presidente.
A paz se instalava. O careca coçava o queixo.
– “Manoel?” – incitou-o o chefe – “A ideia não é de todo má” – falou – “mas talvez pudéssemos fazer o seguinte”.
Propunha um título do gênero: Abaixo assinado contra a corrupção. No corpo do correio eletrônico, alguém de talento escreveria um texto contra a situação de corrupção generalizada em que o país vivia. Falaria do dever de todo cidadão de lutar por uma pátria mais justa, mais honesta, sem corruptos. Apoiaria as ações do Judiciário para limpar o Congresso Nacional da corja que ali se encontrava. Incitaria ao ódio contra a classe política (“todos adoram uma dose de ódio para fugir de suas próprias frustrações” – acrescentou). E no final, disse:
– “No final, o [ ]: ‘clicar abaixo para assinar a petição’”.
Os sócios fitaram-se em silêncio, refletindo. O Presidente sorria para Manoel: merecia uma promoção o bravo Manoel.
– “Quem escreveria a petição?”- perguntou um, desconfiado.
– “Eu poderia…” – insinuou o proponente da ideia, quando foi cortado pelo Presidente:
– “Conheço a pessoa ideal”.
QUEM? QUEM? QUEM?
– “O Birita.”
Aplausos.
– “Perfeito!” “Isso mesmo!” “Disse tudo!” “Fechou!” “Não tem como errar!” – Etc.
Manoel não gostou, retraiu-se como caracol na carapuça, fazendo careta.
Encerrou-se a reunião entre abraços calorosos, os sócios conversando: “como vai o garotão?”; “ah, está crescendo”; “e a família?”; “não podia estar melhor”; “bati sim”; “mas o seguro cobre?”; “espero”; “conheceu a gostosa da Xerox?”; “ô timinho bosta o seu, hein!? quatro a zero!”.
E assim foram deixando a sala, braços entrelaçados, tapinhas nas costas. Só o Presidente lá permaneceu, pensando em como convencer Birita a fazer o discurso, afinal, fora demitido pela empresa há não muito tempo. O cabeça da organização sentou-se, o olhar perdido entre as xícaras de café, os guardanapos sujos e os papeis espalhados pela mesa. Lembrou-se de sua dose de cafeína, intocada diante de si. Bebeu. Estava fria, óbvio! Mas não era tudo: não tinha açúcar. Irritou-se e chamou a menina.
– “Mas o senhor pediu sem açúcar!”
Ele contestou. Ela bateu o pé, afirmando certeza, depois saiu.
– “Sem açúcar, sei. No mínimo estão desviando o açúcar, levando pra casa”…
Discou o ramal do depósito:
– “Quero o responsável pelo almoxarifado aqui na minha sala. Claro que agora!”.
Bateu o aparelho, irritado.
– “Sem açúcar, hum!”.
E terminou por exclamar, depois de ter escavado insistentemente a cabeça, em busca da palavra correta:
– “[ ]!”.


Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Liberdade pela editora Kazuá.

Publicado por:Philos

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