Uma pequena lista de catástrofes se adiantava nos blocos de anotações de dois antigos agentes de trânsito, os seus corpos confluindo com inocência no entroncamento que desembocava para o viaduto-túnel-viaduto em retirada batida da cidade.
Eram dois sujeitos letrados e engravatados, de estatura mediana, em capotes de lã e feltro, sapatos de couro polido e lanhado; conhecidos desde a infância noutra junção do mundo, onde mergulharam no delta do Ganges com outros meninos, macacos e mosquitos verdejantes, posteriormente, havendo se tornado cuidadores de animais na jaula do tigre real Bengali do zoológico de Dhaka até a sorte os agraciar com a loteria para a Amérika. Reservados, esses dois homens tinham por profissão derradeira avaliarem os riscos em aglomerações urbanas e o desenvolvimento de métodos de controle. Sorrindo sob a sombra de um chafariz de água explosivo, o dueto observava o mercado de rua e considerava o verde, o amarelo e o vermelho, belíssimas cores, e respeitava os cavalos por não tomarem lado nas guerras. A sua Dhaka já fora povoada por sorumbáticas carruagens, antes de vinte e três mil humanos no quilômetro quadrado. Quase no fim do expediente, os dois compraram um quilo e meio de ruibarbo a ser transformado em chutney com o sangue da planta exibindo a vermelhidão que se extrai do rosa e passada hemorragicamente no paratha.
Ventava substancialmente na cidade.
O vento ciciava e aliciava as piores mentes, contorcia e distorcia os pensamentos. Dizia-se que o vento estava prestes a construir uma nova cidade a partir dos escombros criados pelo que os meteorologistas asseguraram ser um vendaval diferente dos anteriores, um vendaval de força fatal e oito mil corpos seriam oferecidos ao deus das nuvens, ídolo de baixas exigências e sôfrego, um deus sem forma como os seus súditos, em constante metamorfose de macaco a ovelha a coruja rouca e não se decidia num estado de permanência. As nuvens se aceleravam pelos corredores celestiais, os seus vôos interrompidos por meta-aviões, drones gigantescos manipulados em terra e sem ocupação humana.
Em meio a essa panaceia, Herbert e Gilbert discutiam remédios para as preocupações climáticas que atordoavam os citadinos, uma espécie híbrida de ser humano e ratazana que precisa de sobreviver em condições inóspitas e semi-grotescas, alimentando-se e enriquecendo-se com os restos das últimas duas décadas de abundância e, ainda por cima, lidar com o levante. À partir de uma resolução legislativa estadual e municipal (governador e prefeito num armistício de conveniência equina) acordaram em medidas drásticas como a restituição e reciclagem de resíduos. Atrás deles, anos de desperdícios gerados pelo desdém dos citadinos por qualquer objeto fora de embalagem e que não cheirasse a novo ou qualquer comida que não fosse extremamente fresca! Como de se esperar, os recursos se escassearam e o país que lhes fornecera tamanha bonança fechara os portos, contendo-se para cuidar dos seus habitantes em meio a notícias de guerra comercial.
Saliente-se que Herbert e Gilbert encontravam-se quase no apogeu de suas carreiras trilhadas no funcionalismo público. Se viessem com ideias iluminadas poderiam engajar-se na política e apagar Bangladesh da cartografia sensorial. Logo ao emigrarem, foram convocados a exercer a função de agentes controladores de trânsito devido ao vasto conhecimento prático quando iam e voltavam do zoológico de Dhaka. Desviaram carros, ônibus e caminhões de percursos programados, recondicionaram vidas humanas, atrasaram ambulâncias, enraiveceram taxistas, interromperam ciclistas com empenho. Nessa época, dedicaram-se aos estudos noturnos, prejudicando os seus olhos miúdos com o uso de velas. Formaram-se juntos em “Estudos Urbanos” e compartilharam uma bata azul marinho e violeta para a foto. Na distribuição dos diplomas, não se estranhou os nomes afrancesados. Herbert e Gilbert substituíram Abdul e Fahrid, e quem enxerga a distância entre as palavras. Os dois homens não eram devedores de explicações nem no trânsito nem no cotidiano.
Reverenciadores de Earl Grey, um conde que desconheciam mas que nomeava o chá que lhes apaziguava o estômago (repare-se o uso do singular), Herbert e Gilbert possuíam um estômago em conjunto, ou seja, devido à proximidade siamesa entre eles, convinha crer que compartiam de um mesmo sistema visceral e que essa comunhão os fortalecia. Sustentavam as suas famílias à distância, os filhos educados em internatos em Paterson, Nova Jérsei, as mulheres enclausuradas em apartamentos estilo condomínio na cidade, onde o espírito do poeta William Carlos, combativo no tocante ao poema “A Terra Inútil” de T.S. Elliot, buscara divulgar imagens favoráveis que atraíssem imigrantes para aquela que seria a capital da seda onde se produziu um vestido de cetim turquesa para Liberdade, a estátua, uma mulher que depois de vestida não parava de gritar: “you can’t take that away from me“.
A histeria de Liberdade consumiu incontáveis conversas, derreteu relacionamentos, destroçou a paz de muitos até que Herbert e Gilbert vieram com a ideia de tapar a sua boca com fita vedante, havendo encaixado a mandíbula antes de completar o serviço que exigiu um mutirão de voluntários animados pelos andaimes enferrujados. Herbert e Gilbert vivenciaram a movimentação, regozijando-se com o sucesso da missão encarada por artistas como uma intervenção de vanguarda e os dois homens se cumprimentavam, dando-se as mãos e tapinhas nos ombros um do outro e como a Amérika tem gente com dez olhos, dez mãos, todos apontando para ângulos diferentes e celebrando a inventividade numa tarde lucrativa para os pipoqueiros. O episódio, arquivado na memória oficial, agora necessitava de sequelas inovadoras que manifestassem o magnetismo daquela cidade. As recentes torres de vidro erguidas de terrenos minúsculos, alvejando espetar o céu com certa malícia e má fé (uns diziam que os abutres se espatifavam nas janelas, outros acusavam os engenheiros de pecado capital ao chegarem tão perto do lugar de descanso das almas – o que poderia ser ainda pior se usassem terrenos de cemitérios – e também descanso divino, uma provocação desprovida de decoro!). Pois bem, um certo motorista de taxi, um oráculo nas horas vagas e nas horas ocupadas também, um ser raivoso contra agentes de trânsito vaticinara: as edificações de torres de vidro, responsáveis pela aniquilação dos pássaros junto com os gatos, antecediam a derrocada de um lugar inabitável por citadinos. Os roedores se afugentariam da atmosfera de zumbis, dos corpos ocos que sequer esquentavam a mais doce das almas e enganavam com as refrações dos espelhos cintilantes. O oráculo previa que em menos de cinco anos, um esvaziamento se estabeleceria e espantaria Liberdade, a estátua, emudecida mas não surda.
Naturalmente, a hipótese levantada pelo taxista-oráculo constava da lista de catástrofes que os dois homens alinhavavam, debruçados sobre o balcão da loja de empanadas argentinas, de onde se serviam dos pastéis de forno recheados com passas gorduchas e macias entremeando legumes. De dentro da loja, avistavam-se os caminhões lotados de lixo devolvido de depósitos em Nova Jérsei. Herbert e Gilbert não comiam carne, o estômago deles rejeitava lactose, glúten ou animais e ignoravam como se alimentariam diante da vindoura escassez de empanadas e ruibarbos orgânicos. Ambos acreditavam que os cadáveres digeridos pelo corpo humano regressavam em pesadelos bestiais e limitavam os seus sustos à fealdade de suas mulheres confinadas (elas não eram mulheres feias, note-se, porém Herbert e Gilbert perambulavam pela Quinta Avenida em suas horas acordadas, enchiam os seus olhos com os figurinos nos outdoors que afetavam os seus padrões de beleza. Se alguém
perguntasse a um dos dois por uma definição de beleza, recorreriam ao catálogo da Victoria’s Secret. Tal e qual as nuvens assumiam e variavam as suas silhuetas, os dois homens criaram um apêndice com os seus conceitos de admiração.)
Joseph Orlof servia as empanadas aos fregueses de longa data. Herbert e Gilbert tomavam cuidado para que o líquido adocicado das empanadas não entornasse sobre as suas roupas. Raro um estabelecimento comercial que não houvesse se submetido ao crivo da dupla. As paredes da loja de Orlof se dedicavam a cartazes de lugares paradisíacos a três horas aéreas dali, ricos em praias mansas enfeitadas por coqueiros nas ilhas que não davam indício de estarem em vias de desaparecimento e centralizarem os olhos de furacões mais exaltados, impulsivos e lunáticos onde hordas de eleitores de políticos e governantes abrasivos escolhiam passar as férias. Tal escolha certamente comprovando a necessidade humana por equilíbrio, embora o quadril do lado esquerdo nunca se encontre na mesma altura do direito e vice versa e nunca tenha estado tão em voga a meditação, o estado zen, a natureza e a paz interior. Um exército de praticantes de ioga se formava sem assombrar os monges. Não, Herbert e Gilbert não pulavam em asanas, nem tiravam férias, poupavam dinheiro para aposentadoria.
No triângulo que funcionava como praça e rótula (curiosamente uma rotatória triangular, conhecida na Lusitânia como “rotunda”, um lugar por onde circulam massas de desempregados, hipnotizados pela desesperança da grama seca, labirinto do qual podem sair sem o perceber e continuam em rondas até o fim dos séculos ou um incêndio que se alastre, o que vier primeiro), neste triângulo, os pombos devoram as migalhas que as idosas dedicadas às coletas de recicláveis lhes dão enquanto selecionam com seus filhos os engradados que amontoam para recompensa financeira, o negócio do lixo virado coisa de mãe e filho.
É preciso retificar o coração para que as ideias fiquem claras, para que o bom senso o dirija, nada de emoções fortes, ressentimentos, paixões, fracassos, elementos que facilmente desviam a atenção do alvo maior que é o equilíbrio fértil. Herbert e Gilbert se situavam neste estado de espírito defendido por Confúcio. Com os quatro olhos oscilando entre um cartaz com flamingos floridianos e a visão dos pombos vivos e afoitos, os dois homens saltaram num lance de gênio poético. Era como se um relâmpago os houvesse atingido e o vento não levasse embora a consciência de ninguém. Ali, à sua frente, estava a solução para incrementar o enredo da ópera estreada por um Pavarotti no palco do Metropolitan. Os pombos deveriam de imediato entrar em uma dieta rica em carotenoides! Pequenos crustáceos, plânctons, insetos e moluscos seriam atirados pelos quatro cantos norte leste sul oeste e quem oferecesse outro tipo de nutrição aos pombos estaria passível de aprisionamento ou multa. Em quinze dias, Herbert e Gilbert estimavam que os pombos se transformariam em seres cor-de-rosa, volantes e em concorrência aberta com as alvas nuvens animalescas. Decerto, os citadinos alternariam de humor. Nos dias cinzentos, essas aves rosadas encantariam as almas, das suaves às cruéis, convencendo aos escavadores de lixo devolvido de que a vida oferecia fragmentos cor de rosa, bastando olhar para cima para se alegrar. Os únicos que não se beneficiariam do milagre de consumir dejetos e ludibriar-se com o rosa seriam os jogadores de basquete com pescoços de aço, um detalhe que Herbert e Gilbert não falharam em acrescentar à lista das catástrofes. No próximo capítulo, Herbert e Gilbert proporão um monumento em homenagem a Karl Rossman usando sucata prateada. Amém.

SOBRE AS CORES: DO COR DE ROSA À VERMELHIDÃO

Goethe e Newton se desentenderam à respeito da doutrina das cores, mas “Wittgenstein, contrapondo-se à tentação fenomenológica, enunciará que as análises de Goethe do caráter da cor, fechadas a um único critério de identidade, são inúteis ao pintor.” E o que quer um pintor saber dessas discórdias multi-cromáticas nada aromáticas? Pouco ou nada quando possui os pigmentos, a luz e a visão, elementos igualmente dispensáveis nos sonhos onde as cores nascem de um cérebro exclusivo.
O rosa, derivado da vermelhidão, acalma prisioneiros em celas cobertas de tinta pink. Enquanto o azul feminino cobrir o manto da Nossa Senhora, o rosa em suas versões escarlatinas e de vigor masculino estampará os trajes dos cardeais. Considerado o “azul marinho da Índia”, seria o rosa uma cor de luxo, de guerrilha ou da lama de Paris?


KÁTIA BANDEIRA DE MELLO-GERLACH é natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova Iorque, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Vila-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos.

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