Ele despertou com a alma do cosmos em sua branca abundância. No parque, os galhos secos de um inverno sob temperaturas outonais estalavam, renovando a vocação dos elementos sazonais. A lua perseverava no topo daquele dia de azul raríssimo, nutrindo-se de fontes invisíveis. W.H., o seu visitante semanal, não chegava, e este atraso o incomodava, desestabilizava a poeira sobre os objetos inanimados ao seu redor, permitia que a branquidão lunar estourasse no ar de vidro.
Ei-lo cego pela intensidade da noite que fora luminosa como a palavra, sobrevivendo à madrugada, roçando nele com ventosas, debaixo do lençol leitoso jogado sobre o seu corpo. Qual a palavra luminosa emitida na sua direção, buscava lembrar-se. Precisava de reaver os dias anteriores, apalpar a imagem insólita do passado. O misticismo da hora apresentava-lhe possíveis desfechos: o fim de uma fileira de nuvens, o fim de correntes de vento que pareciam ir em vários sentidos, o fim de conversas que jamais aconteceram, o fim da noite do zoroastro do Upper West Side.

Era cedo para o crepúsculo interior. Mal nascera o dia. As silhuetas minúsculas das calçadas se enfureciam em meio ao alarido do motor das ruas, um motor compulsivo e coletivo que, se fosse morrer, morreria em sua totalidade. A audição de Patel se reduzia ao fio que ecoava das ruas, junto com o ciciar da mulher, dos filhos, ou de W.H., o visitante. Faltava silêncio, ou em sua cabeça ou, em seu apartamento abafado. A morada no décimo andar de um prédio pré-guerra conteve cinquenta anos com Myra. Ela viera lhe servir o chai adocicado e depois não estava mais, uma marionete liberta das pontas de seus dedos que tocaram no rosto, sempre no seu rosto.

Perto um do outro, e os dois lados do rosto da Myra suscitavam em Patel um misto de sentimentos de atração e repulsa. O lado esquerdo se sobressaía por não despertar nada e o fazia inquirir o por que a todo o custo queria sentir algo. O espanto quase o levava a afirmar que ninguém existisse na pele lisa, desnuda da Myra. Para compensar, o lado direito terminava ou começava, uma onda de terror sombrio. Desde que o sinal fora concebido, a pinta preta se expandira até atingir um tamanho do qual o seu olhar não lograva fugir. As sensações sedimentavam-se naquele buraco, posicionavam-no à deriva. Desviava o olhar da mulher para evitar cair na escuridão daquele labirinto.

Rezava uma antiga fábula que os olhos esbugalhados ou mortos se originavam de olhares desviados e mergulhavam nas águas. Havia quem os encontrasse na correnteza dos rios e dos mares, inevitavelmente colando-se nos peixes. Patel calculava as inúmeras vezes em que se recusara a fitar Myra, doravante, alimentando infinitos aquários e um tapete de olhares repelidos no chão do oceano. Aborrecido pelas janelas fechadas, pelas vozes difusas e caixas com sons triviais, suspeitava que um evento definitivo estivesse por vir, como entregar-se à sonolência. O zoroastro emaranhava-se numa teia de conversas.

Num gesto inócuo, abriu o livro. No suave embalo da cadeira de balanço, os seus pés não alcançavam o solo endurecido. Gostaria de ir lá fora, cruzar o ar de vidro da manhã mas não saía às ruas desacompanhado. Portanto, agravava-se a impaciência com o atraso de W.H., que lhe traria o correio e algumas compras, e poderia lhe dar o braço numa volta pelo quarteirão. Durante a espera, Patel pretendeu ler com a ajuda da bola de luz natural que despertava nele a ideia de planeta. Uma bola delicada e, ao mesmo tempo, brutal que o dominava e pesava como a terra. Na página 52 do livro de Brodsky, enxergou as marcas das mãos sujas e versos irrevogáveis aumentados pela sua lupa, quando dali escaramuçou-se uma formiga.

A imensidão do movimento da formiga o fez estremecer. Por detrás do medo, surgiam pensamentos de olhos arregalados. Aos noventa anos, o zoroastro não enxerga o rio que corre à margem da avenida e do parque e agita o seu coração de super-homem. Alimenta-se de peixes que vem de longe, muito longe. Não os vê chegar como animais. Param em seu prato diário em forma de filé, limpo de espinhas, brancos como a fração da lua. O apartamento imerso na débil coloração das sombras recebia um cheiro esquisito que não era de peixe, um cheiro de frio e bichos, o mofo perfumado do corpo de Myra. Patel bebericou um último gole do chai, revelando um filme, uma mancha que eclodia do fundo da xícara, um resto de açúcar mascavo e temperos. Arranhou aquela película sobrecutânea com a colher até fazer sangrar. A mácula era indelével. A luz branca escorria sobre o zoroastro e ele, teimando com a colher, sequer ouviu o ruído íntimo na fechadura da porta, enquanto W.H., recém-chegado de Sirius, girava a chave e a formiga saltava para aventurar-se sobre o dorso do livro.

Detalhe da obra Io, de Ingrid Maillard (2018)

 

VARIAÇÕES SOBRE O BRANCO

Plínio, o Ancião coloriu as nuvens com pigmentos altamente tóxicos da cor branca. O branco de chumbo é um carbonato básico de chumbo com uma estrutura cristalina molecular. É grosso, opaco e pesado. Há dois mil anos, Plínio descreveu o seu método de produção através de fermentação. O branco de chumbo exala um odor pútrido e compõe os esqueletos das múmias encontradas em escavações.
Um poeta grego descreveu o fenômeno de envenenamento por chumbo. As rainhas iluminavam os seus rostos com um pó contaminado por chumbo: “O Preferido de Eugênia”, e sofriam das neuroses induzidas pelo branco. “Quem lava as roupas brancas das Rainhas?”, perguntou um poeta indignado.
Uma criança acertava as esculturas de Anatólia com bolas de papel. Outra criança, com bolas de neve. A terceira criança pode adivinhar a brincadeira enquanto prepara barquinhos de jornal para lançar num lago transparente.
Conta-se que uma montanha distante, onde subiu um Zoroastro, dissolveu-se em prata por haver consumido humanos antes da nova civilização. A cor prateada é uma outra versão do branco, assim como os Espíritos de Saturno, embora o branco não seja uma cor.
Plínio, o Ancião nomeou Zoroastro como o inventor da Mágica (magia do branco?) e declarou que ele riu no dia em que nasceu. A cabeça do Zoroastro latejava de tal modo que repelia as mãos que nela encostassem, indicando a sua genialidade.


Kátia Bandeira de Mello-Gerlach é natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova Iorque, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Vila-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos. Autora, dentre outros, dos livros Colisões Bestiais Particula(res) e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas, publicados pela Confraria do Vento.

As ilustrações que acompanham o texto são da série Io (Eu), de autoria de Ingrid Maillard, colaboradora da Philos na França e responsável pela direção de arte da edição impressa #2, lançada no Flipoços 2018.

Publicado por:Philos

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