Lei de descaso e efeito
O sangue que escorre do meu peito
Ainda tem o gosto de poeira
Da areia lamacenta do navio negreiro,
A minha favela disfarça a senzala
Minhas crianças magricelas
Têm ainda a mesma cara.
Substituíram as chicotadas
Por balas perdidas que nos encontram
Que a gente tropeça já na descida
Pra não conseguir chegar ao asfalto
Aonde quem chega é sempre vigiado
Onde se ouve nos rádios da Polícia:
“Tá tranquilo, ele tá cercado”
E te esperam dar o primeiro passo errado
Pra jogar no camburão
E ser o primeiro a enfiar a mão na nossa cara,
A chicotear com cassetete…
A gente, acostumado a apanhar de vara,
Onde desde cedo nos algemam no seu fuzil
Que nem fazem o favor de virar pro lado
Enquanto a gente fala
E se explica e gagueja e fraqueja
Porque a justiça para a gente é calada
Nos tribunais vendem a nossa cabeça
E entregam em leilão numa bandeja.
Eles põem a gente em cativeiro
Cada vez mais cedo pra não dar tempo de crescer
E aprender a dizer tudo isso
Que mal dão oportunidade de a gente entender,
Pois não dá pra chegar nem na porta da escola
Sem ser acuado a traficar droga
E, cada vez mais jovens, nossas crianças são tomadas
Cada vez mais pobres mantêm suas prisões lotadas
Cada vez mais nobres exibem suas mãos manchadas
Do sangue das nossas crianças
Que têm que dividir cela com marmanjo de idade
Que promete futuro e identidade
Até porque a gente não sai dali pra faculdade
Nossos filhos fadados a nascer em cativeiro
A construir a própria senzala – sem dinheiro,
Com o entulho que sobra da sua mansão de luxo
E se veste com os remendos da sua pele de cordeiro
Desde cedo a gente ouve: segue o fluxo
E torce pra conseguir dormir à noite
Com a polícia revistando nossa senzala
Com a polícia justificando a sua falha
De matar um inocente a quinze balas
Que acertaram de raspão no coração
E eles não são culpados, não
Culpada é toda esta nação
Que culpa a gente de nascer em cativeiro
Que não oferece educação ou mesmo emprego
Onde os meus filhos eu tenho que fazer bem cedo
Pra conseguir ver os meus netos
Nascendo já com esse olhar de medo
Porque até lá com dez já pode ser preso
E vão recrutar cada vez mais cedo
E a arma que nos dão não é de brinquedo
E a vida roubada nunca foi segredo
Pra ninguém.
Porque favelado é tudo sem educação
E não merece conviver com a sua estirpe
De sinhôzinho e sinházinha
Que o livro de história prega
Mas cada história é contada de um jeito
E enquanto enchem a cidade de bustos
De um monte de sujeitos ditos justos
Vocês esquecem que são dois lados na moeda
E que existe uma lei de causa e efeito
E essa é a única lei que existe na favela.
Hozana Bidart (Rio de Janeiro, 1997). Encontra na poesia uma forma de desconstrução: da LGBTfobia, do machismo, do racismo, de preconceitos sociais e culturais e, acima de tudo, luta pela sua ideologia de que a poesia nasceu para ser acessível a todos, como uma espécie de voz e alento, sem perder uma delicadeza poética única.
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