sem título

Cruzo estas portas estranho-me o asco
de sempre dou corda à caixa de música
que está quebrada a bailarina brusca
nas rotas insólitas de outro fiasco
risca seu ruído qualquer de plástico
alheio não nada naquela acústica
parece errado como sai o pus da
veia cística ou marca de tabasco
presa na camisa listrada estranho
que isso tudo tão certo seja excito
-me como moleque no canto fanho
como um tiro errado ganso balístico
põe o agasalho inútil garro ranho
preso nas botas (as portas) persisto

sem título

para dante e íris

Tudo termina é certo já sabemos
desde o começo e se esvanece
feito névoa na chuva tudo nesse
mundo deriva igual àqueles remos
que sem querer soltaram no descanso
do barco desatentos e desandam
na correnteza lenta leve mansa
que ainda assim carrega e tudo manda
perder-se além da vista igual vapor
que sai do asfalto e turva os olhos ou
o boneco de neve que me encara
depois que uma garoa reverdece
o campo e ele deformado tece
um rastro que persiste e nele traz a minha cara

Tudo é sagrado pois se perde é rara
a vida bem sabemos mas transborda
feito aquele relógio de dar corda
do teu avô ou bisavô que para
a cada instante ou que parava e vai
seguir parado na gaveta mas
ainda assim convoca muito mais
porque seu rastro é justo o que se esvai
e o boneco de neve que me enfrenta
e que fiz pra vocês como um rebento
torto tornado um elo que mantemos
contra a distância ele agora me acusa
seu fim e ainda assim também recusa
em terminar nada termina é certo já sabemos


Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984). É poeta, tradutor e professor na UFPR. É autor dos poemas de brasa enganosa, Tróiades, l’azur Blasé, Naharia e carvão : : capim, e do romance História de Joia. Publicou traduções da Anatomia da melancolia de Robert Burton, das Elegias de Sexto Propércio e dos Fragmentos completos de Safo, entre outras. É coeditor da revista-blog escamandroi e membro do grupo de performance tradutória Pecora Loca.

Publicado por:Philos

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