jack e eu nos damos razoavelmente bem:
o suficiente para não nos matarmos:
difíceis são as noites porque jack reza muito
e seu arrependimento aparentemente sincero
inunda o chão: é preciso levantar
no meio da noite e molhar os pés
nos pedidos de perdão de jack: há muitas vidas
em sua vida na vida de sua navalha de aço
no gume de seu bisturi sedento:
jack reza e geme e se arrepende
com aparente sinceridade: penso se algum dia
ele secará se ele transbordará até
a última gota se tudo de repente sairá dele
por simples cansaço desidratação da culpa
ou perdão de algum deus impaciente
que diga: chega jack: deixe os outros
dormirem em paz deixe de inundar o chão
na madrugada deixe os mortos em paz
não os faça flutuar na barca furada
do teu pedido de perdão: a canoa do perdão
também naufraga no cotidiano: talvez então
jack se cale e nos deixe dormir em paz
sem a umidade debaixo da cama
e não como fetos que acordam cobertos
de musgo e sangue e água: mas no fundo
duvido que essa noite chegará: são muito sujas
as duas mãos de jack seu abdômen de inseto
seu olhar que pouco pisca: eu e ele
nos damos razoavelmente bem: mas não
o suficiente para que minha navalha
não durma embaixo do meu travesseiro
a um toque da minha mão esquerda


Carlos Moreira nasceu em 1974. É autor dos livros “Tetralogia do Nada” (Clube dos Autores), “Cardume” (Valer) e “Corpo Aberto” (Patuá). Os textos acima pertencem ao livro inédito “Seol”.

Publicado por:Philos

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