Em um fim de tarde de domingo, Renato estava sentado em sua poltrona Charles Eames preta, escutando os vizinhos gritarem cada gol, ou quase gol, de um jogo de futebol. Não sabia quais times estavam competindo e também não se importava. A sua televisão permanecia desligada em um canto menos importante da sala, esquecida na maioria do tempo. Gostava de ficar em silêncio, quase em estado de meditação, apenas absorto pelos sons de carros e pessoas que passavam do lado de fora, dez andares abaixo.
Com os braços soltos sobre as pernas, olhava as marcas que havia feito na pele nos últimos anos. Tinha passado por todos os estilos de tatuagem — tribal, oriental, old school, new school, trash polka, russa, realista, geométrico — e tinha todos os tipos de desenhos — cobra, ondas, fumaça, navio, baleia, pin-up, caveira, corvo, bisão, rosas abertas, carpas, carro, sereia. Havia coberto o peito, os braços, as mãos, os dedos e o pescoço com imagens que não significam nada além de uma estética que o agradava, mas que mudara no decorrer dos anos. Com exceção de uma que o marcava como uma cicatriz, não como um desenho.
No seu antebraço esquerdo, uma figura feminina parada à margem de um rio, vestida de trapos azuis e penas marrons de pontas brancas, segurava, com a mão direita, um pequeno espelho com o vidro quebrado. “Suzanne takes you down to her place near the river” cantarolou enquanto passava o polegar sobre o rosto da mulher. Era um trecho da música do Leonard Cohen que evitava escutar por precisar espantar qualquer memória que fosse trazida por ela.
Ainda assim, levantou e caminhou até a estante onde guardava os discos. Teve que esticar os braços para achar, escondido no fundo da prateleira e coberto pela poeira, o álbum de capa amarela com um Leonard Cohen de olhar vago e mão segurando a gravata. Passou a manga da blusa sobre a capa e abriu a tampa da vitrola. Quando posicionou o disco adormecido sob a agulha, os primeiros acordes o acordaram do seu torpor:
Suzanne takes you down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she’s half crazy
But that’s why you want to be there
Deixou que a música lhe trouxesse o sorriso fácil, às vezes até desnecessário, o cheiro dos cabelos e o pescoço longo que tanto gostava de encaixar a cabeça. A grossura da língua e o jeito que ela mordia os lábios dele quando queria provocá-lo. Das mãos sempre frias e do olhar de submissão que ela lançava sobre ele quando faziam amor.
Acendeu um cigarro e afundou de volta na poltrona. Ele nunca quis se mostrar vulnerável, inteiramente disponível, amável além do casual. Havia se coberto de camadas e camadas de tinta para se sentir protegido de qualquer sentimento que pudesse invadir seu lado de dentro do peito. E ela havia sido impedida de entrar.
Agora, a armadura o fazia sentir-se mais só do que jamais fora. Insistia em buscar amigos para viver em um passado que os outros já não viviam. Conversar sobre memórias que já não importavam mais. Olhava-se e não reconhecia a pele acinzentada e as pontas de pelos brancos que surgiam a cada manhã, impondo-se sobre os sulcos esculpidos pela magreza do rosto. Os desenhos em seu corpo ficando desbotados, frouxos e disformes pela perda de músculos.
E a cada vez que escutava essa música, sentia o corpo definhar um pouco mais, o peso dos anos forçar a coluna. Percebia-se cada vez menor nos próprios móveis. Reduzia-se com a tristeza.
E foi reduzindo até não mais caber em suas roupas. Arrastava as mangas das camisas pelo chão da casa e usava um banquinho para subir na cama e alcançar a pia do banheiro e da cozinha. Diminuía dia após dia até não conseguir mais segurar as panelas e equilibrar os talheres. Comia com as mãos e se enrolava em fronhas. Sujava a casa e não conseguia limpar por não mais aguentar o peso das coisas. Sentia-se como um João fugindo do gigante que sua casa se tornara.
Pequenino, brincava com a própria solidão, fazendo de conta que havia vivido diferente e que hoje estava de mãos dadas com todas as mulheres que não amou. Lia para elas, penteava-lhes os cabelos, abraçava-as com o mesmo carinho que elas o haviam nutrido. Então, numa manhã com o sol batendo em seu corpinho encolhido sobre o tapete da sala, Renato olhou pela última vez para a tatuagem da mulher, agora tão insignificante quanto ele, que o encarava de volta com os olhos cor de mel, quase vermelhos, mas ainda humanos, chamando-o para finalmente se encontrarem naquele lugar perto do rio.
Marcia Dallari (São Paulo, 1980). É autora do livro Romanxorcismo: doze contos de amor, sexo e dor de cotovelo. Além de contribuir para revistas literárias, também escreve para a sua página no Medium.