São raros os registros televisivos de Clarice Lispector, cujo centenário se completa neste 10 de dezembro. Tida como uma escritora difícil, ela alimentou uma imagem pública igualmente enigmática, e esteve mais confortável como entrevistadora do que como entrevistada. Em 1977, no entanto, Lispector concedeu uma entrevista – sua última – para o programa Panorama, da TV Cultura. Em certa altura, o repórter Julio Lerner pergunta como a escritora encarava a fama de difícil, ao que ela responde: “Não me considero hermética, mas tem um conto meu que eu não compreendo muito bem: O Ovo e a Galinha”.
Publicado pela primeira vez em 1964 na revista Cadernos Brasileiros, o conto integrou a coletânea A Legião Estrangeira, lançada no mesmo ano. Naquela altura, os jornais já anunciavam Clarice como “a escritora mais discutida do Brasil”, dando-lhe destaque e atenção raros para autoras mulheres. Era a tal fase madura de sua obra. Onze anos após a primeira publicação, Clarice levou o conto incompreensível para o Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, ocasião em que foi convidada a proferir uma fala.
“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”, é assim que o texto se inaugura. Ao longo de intensas e breves páginas, acompanhamos uma dona de casa preparar o café da manhã de seus filhos. A premissa pode parecer banal, mas logo nos deparamos com uma mulher perplexa diante dos ovos que vão para a frigideira. O texto é povoado por fluxos de pensamento e por vezes nos questionamos a que gênero pertence, se conto ou crônica. Assim como a circularidade do ovo, a narrativa não coincide com qualquer perspectiva linear, e parece dar voltas sobre si mesma.
O que Clarice faz é estranhar e interrogar o ovo até transformá-lo numa forma estrangeira aos signos culturais. Nem alimento, nem origem da vida, sua presença banal se converte numa experiência assustadora e fascinante: inapreensível. A tarefa doméstica soa como pretexto para a revelação e a cozinha faz-se laboratório de reflexões:
Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo? É quase certo que sei.
Mas o espanto diante do ovo – este palíndromo essencial – é antigo. Lembremos daquele que é considerado o primeiro poema visual da história ocidental, “O ovo”, do grego Símias de Rodes, escrito por volta de três séculos antes de Cristo. Ou, mais perto de nós, o “Ovonovelo” (1956) de Augusto de Campos, ou ainda o “Ovo de galinha” (1961) de João Cabral de Melo Neto, e tantos outros. Para a turma formalista, o zigoto é inquietante.
Entretanto, gostaria de relacionar os ovos de Clarice com alguns trabalhos visuais das décadas de 1960, 1970 e 1980 no Brasil, períodos mais próximos ao conto. Naqueles anos, não foram poucas as obras que tentaram construir um abrigo para si, um ninho, um aconchego possível. Aliás, talvez esse movimento de interiorização se relacione com a dificuldade de estabelecer uma esfera pública para a arte brasileira, mas isso é conversa para outro momento.
Conhecemos os casos mais emblemáticos, como “A casa é o corpo” (1968), de Lygia Clark, ou “Os ninhos” (1969), de Hélio Oiticica, mas quero me concentrar nos trabalhos que se debruçaram mais diretamente sobre o ovo, como é o caso de Anna Maria Maiolino, Celeida Tostes, Regina Vater e Lygia Pape.
No caso de Celeida, a relação mais estreita se dá com a obra “Passagem”, realizada em 1979. Com a ajuda de duas assistentes, a artista cobriu o corpo com argila líquida e entrou em um grande vaso de barro construído em seu apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro. Suas assistentes cobriram o vaso com mais barro até fechá-lo, mantendo Celeida selada lá dentro, como num ovo. Depois de algum tempo, a artista rompeu a estrutura com força e projetou seu corpo para fora, o que rendeu um trabalho entre a escultura, a performance e a fotografia. De imediato, compreendemos a ação como um ritual de renascimento.

A partir dos anos 1980, Celeida realizou outros trabalhos com ovos, sobretudo através de práticas contínuas e repetitivas. Um projeto não realizado para a 18ª Bienal de São Paulo (1985), por exemplo, previa uma instalação com trinta mil ovos feitos em barro, que seriam espalhados pelo chão e cobertos de terra vermelha. Não era a primeira vez que a artista apostava em grandes números. Mil bolas, dez mil ovos, mil Vênus, mil selos, mil tijolos, mil amassadinhos. Repetir, repetir, repetir, até que o fazer supere o indivíduo, como num mantra. Podemos ler o trabalho de Celeida como um gesto praticado à exaustão. Clarice dirá: “Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo o ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. (…) O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia.” Não é para menos. Os ovos são legados jurássicos, memórias de dinossauros em pleno café da manhã. O ovo é pré-linguagem, forma-pura transitória. Nesta direção, o que Celeida perseguiu foi o gesto arcaico, originário. Seu ovo também é supracultural. O ovo primitivo.
Outra artista afeita à repetição é Anna Maria Maiolino. Assim como Celeida, ela realiza uma série de esculturas em barro, exercícios do arcaico. Mas chamo atenção para as “Fotopoemações” da série “Vida afora” (1981), que apresentam um ambiente doméstico permeado de ovos selvagens em diferentes situações. Numa foto, uma mão entrega um ovo à outra mão. Noutra, um ovo aparece desembrulhado sobre um papel de jornal. Numa terceira, uma cama está tomada de ovos, e perdeu sua função. Há outras ainda com ovos aglomerados sobre uma cadeira; entre as pernas de uma mulher; no vão de uma porta semi-aberta; na beira de uma escada. Em todas, estamos diante de uma forma frágil que opera tensões entre a vida e a morte. As situações demandam cautela, delicadeza e zelo. Um único gesto abrupto e tudo pode ruir, tudo está prestes a rolar e cair. “O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou.”, nos diz Clarice. E também como no conto da escritora, tais experimentações são fruto de um tédio doméstico majoritariamente feminino. Revisitar os ovos em casa, no comprimento das horas.
Em “Entrevidas”, talvez seu trabalho mais famoso, 70 dúzias de ovos galados são espalhadas pelo chão cuidadosamente, de modo a permitir a passagem de pessoas. Trata-se literalmente de “pisar em ovos”, como sugere a expressão popular. É preciso ter cuidado e delicadeza para não quebrá-los e é com apreensão que fitamos as pernas femininas no meio deles.
Não falamos mais do ovo como origem primeira, ponto de partida da vida. O que figura aqui é a ambiguidade de uma forma frágil e ameaçadora, simultaneamente. Uma armadilha quebradiça. No caso de Maiolino, não é exagero dizer que a relação com o ovo reflete condições existenciais amplas (dentro e fora, morte e vida, cheio e vazio), mas também condições sócio-políticas do ser mulher. Seu ovo é o ovo ambíguo.

O gesto de renascimento presente em Celeida também aparece no “Ovo – Trio do Embalo Maluco” (1968), de Lygia Pape. Nesta obra, três sambistas surgem de cubos coloridos, depois de romper camadas de papel ou plástico fino. O interesse não estava na forma-ovo, mas na sua metáfora — invólucro que abriga o corpo e o prepara. De fato, os artistas daquele período estavam interessados numa aproximação entre arte e vida, ao fazer da prática artística uma experiência ativa não só para o seu criador, mas também para o seu público, na ambição de transformar o sujeito através de experiências sensoriais e corporais. Neste contexto, o ovo era um significante fértil, pois reforçava no homem o caráter simultâneo de sujeito-objeto. Hélio Oiticica diria: “Habitar um recinto é mais do que estar nele, é crescer com ele, é dar significação à casca-ovo”. O ovo como mediação entre eu-mundo.
No caso de Pape, o interesse pela construção de uma identidade brasileira faz do ovo um ponto de partida cultural. Orientada pelo crítico Mário Pedrosa, a artista buscava certas “origens” nacionais, e estava sobretudo voltada para as culturas indígena e negra. Pape, como Oiticica, se empenhou em articular tendência construtiva e cultura popular. Sambistas renascendo de ovos geométricos podem ser lidos como a afirmação dessa identidade, com todas as contradições que isso implica.

Na via oposta, o “Ovo Cósmico” (1980) de Regina Vater é o ovo do time, do tempo. É o ovo que nos fala de uma produção que não pode ser simplesmente acelerada, e que impõe seus próprios rituais. Há duas versões deste trabalho. Numa delas, a peça está intacta, e seu tamanho se assimila ao ovo de um avestruz, estranho aos nossos usos. Na outra, a casca está quebrada, e se aproxima da escala dos ovos de galinha, mais familiares. Embora reproduzam tamanhos naturais, eles não tem conteúdo. Um é pura exterioridade, enquanto o outro é oco, vazio. “Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo.”, diz o conto. Maiolino, em um de seus poemas, também diz: “O OVO é o OVO / protótipo de inteireza / mesmo aberto na frigideira”, algo próximo de João Cabral: “E só miolo: o dentro e o fora / integralmente no contorno”. Os ovos de Vater remetem ao próprio fazer artístico, à gestação da forma. Não basta os ovos serem formas perfeitas, eles precisam ser incubados. Ovo-tempo.
Embora todas sejam mulheres, creio não caber aqui qualquer leitura simplista de gênero, que buscasse na relação ovo-mulher uma justificativa essencial. Em algumas delas, no entanto, o espaço doméstico é dado importante e revela não o essencial, mas o social. A inquietação se constrói através da cozinha e da casa, como em Clarice e Maiolino. Nesse contexto, é conhecida a anedota contada por Maiolino sobre sua estadia em Nova York com o artista Rubens Gerchman, naquela altura seu marido. Em 1970, um repórter do Jornal do Brasil foi à Nova York fazer uma reportagem sobre os artistas brasileiros que viviam nos Estados Unidos e entrevistou uma série de personagens na casa do casal, entre Hélio Oiticica, Amilcar de Castro, Ivan Freitas e o próprio Gerchman. Maiolino narra que, embora já fosse artista, ninguém a convidou para participar da matéria, e o que lhe coube foi servir o café entre os presentes.
Já no caso de Clarice, a problemática ganha ainda outras proporções. Como jornalista, a escritora publicou uma série de crônicas em colunas femininas, buscando situar a função das mulheres em várias esferas da vida social. Em “Dirigir um Lar”, publicado em 1960, ela dizia: “O lar é o lugar onde devemos encontrar a nossa paz de espírito num ambiente limpo, sadio e agradável e cabe à mulher providenciar isso”. Em paralelo, uma das explicações da escritora para não dar entrevistas era que “Eles não iam entender uma Clarice Lispector que pinta as unhas dos pés de vermelho”.
As negociações entre escritora/artista, mãe/dona de casa, figura pública/privada são vastas. Depois de imersa nas interrogações filosóficas ao redor do ovo, a personagem de Clarice restaura seu papel de mãe: “Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema (…)”. Nenhuma delas é isto ou aquilo. Ao contrário, são compostas de múltiplos papéis, projetando possibilidades de convivência.
Mesmo por isso, creio que entre os trabalhos aqui reunidos pende o desejo do refazimento de si, a aposta no ovo como transformação que aponta para fora do lugar premeditado da cultura e das normas sociais. Entre passado e presente, são mulheres empenhadas em gestar um ovo-liberdade. Ovo-voo. Afinal, Clarice nos diz que “Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome”.
Pollyana Quintella (Rio de Janeiro, 1992) é curadora, escritora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ (2015), é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ (2018), com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa e doutoranda pela mesma instituição. Sua prática transita entre a curadoria institucional e ação independente e experimental, buscando aproximar artes visuais, poesia e literatura. É curadora adjunta da exposição FARSA – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal, em cartaz no SESC Pompeia entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021. Com coordenação de Marta Mestre, a exposição reúne mais de 40 artistas brasileiras e portuguesas, com obras históricas e contemporâneas que refletem sobre os limites da linguagem. No campo institucional, colaborou com pesquisa e assistência de curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR), entre 2018 e 2020, onde foi curadora assistente da exposição Tunga: o rigor da distração (2018), com curadoria de Luisa Duarte e Evandro Salles; foi também co-curadora da exposição O Rio dos Navegantes(2019-2020), ao lado de Evandro Salles, Marcelo Campos e Fernanda Terra e co-curadora da exposição Mulheres na Coleção MAR (2019), acompanhando o programa que visa aumentar o número de artistas mulheres na coleção e engajar funcionárias e colaboradoras do museu em atividades semestrais. Foi curadora assistente da exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal com curadoria de Luisa Duarte (MAM-BA/ MAMAM – 2019). Atuou ainda na equipe de curadoria e pesquisa da Casa França-Brasil, na gestão de Marcelo Campos (2016), participando da concepção de diversas exposições. Na prática extra institucional, experimenta jogos curatoriais, exposições portáteis, comissionamento de novos trabalhos e práticas que instiguem diálogos com artistas mais jovens, com proposições que testem os limites institucionais. Neste campo, as principais proposições são nanica I exposição portátil (2017-2018), 9+1 (2015-2017) e Rejuvenesça: poesia expandida hoje (2018). Leciona história da arte brasileira em cursos livres no Rio de Janeiro e em São Paulo, sobretudo voltados para crítica de arte e arte moderna e contemporânea brasileira. Colabora também com diversos periódicos como Revista Select, Revista Continente, Revista Pessoa, Jornal Folha de São Paulo, Jornal Agulha, Revista USINA, Revista A Palavra Solta, Hysteria, Revista Philos, entre outros.