Um poeta prestes a se entregar ao mar. E a nos arrastar com ele, entregando também o mar a nós, feito onda a quebrar e repuxar. Após se banhar do desconhecido que é toda estreia literária, com Um Livro sem Título (7Letras, 1998), e mergulhar No Escuro da Noite em Claro (7Letras, 2016), Christovam de Chevalier prepara um novo livro de poemas: Marulhos, outros Barulhos e alguns Silêncios.

Bem próximo à beira-mar que as modificações urbanas do Rio de Janeiro aterraram, na Lapa onde os que não pretendiam retornar a Portugal ergueram –– reparem a poesia –– uma igreja voltada à cidade e de costas à Guanabara, Chevalier me concedeu uma entrevista que veleja, leve, por muitas águas.

Christovam, um dos eixos da Philos é divulgar novos autores. Como foi o início da sua escrita? Eu escrevo porque gosto de ler. Antes de poeta, sou um leitor. Acho que já fui mais voraz, mas continuo um leitor constante. A escrita, para mim, é como uma necessidade fisiológica, como ir ao banheiro, como fazer amor, é algo que eu preciso botar para fora. Não tenho uma visão muito sacralizada da escrita, como alguns colegas. Para mim é um trabalho, como o meu trabalho de jornalista; é um processo em que se lida com criação mas que precisa ser burilada, exigindo empenho, dedicação, autocrítica. Esse processo de escrita, para mim, foi muito intuitivo. Eu sempre gostei de escrever para mim, até que tomei coragem e lancei meu primeiro livro. Mas tem um detalhe importante: no colégio, ali pela sétima série, eu lembro que a gente tinha redação às sextas-feiras. Em uma semana eu escrevia em prosa, e na semana seguinte, um poema. E um colega, o Leandro Firmino, lia meus textos e dizia “nossa, você é um poeta!” –– e eu achava a maior graça, que ele estava louco… Mas fui escrevendo, escrevendo, para mim, até mostrar coragem para mostrar o que eu escrevia.

Você lançou o primeiro livro bem novo, quantos anos você tinha? Vinte e dois. Eu acho que era novo, mas para muita gente, para a realidade brasileira, eu não era novo não, tem muito pai de família com vinte anos. Mas dentro da minha realidade burguesa eu era, ainda estava ali pelo meio da faculdade… Eu digo novo porque a literatura exige uma vivência, para você criar, para ter uma autenticidade no que você está propondo, uma maturidade. A Lya Luft, por exemplo, eu acho um barato, ela só lançou o primeiro livro autoral com quarenta anos. Eu na verdade considero o No Escuro da Noite em Claro como meu livro de estreia, o Livro sem Título foi um balão de ensaio.

E você ainda revisita, e se revisitar, ainda gosta dos primeiros poemas que escreveu? O livro de estreia tinha uma verborragia de que não gosto. Hoje eu vejo a poesia como uma forma de comunicação muito econômica, sucinta, direta. E os poemas, além de verborrágicos, eram muito confessionais, e o leitor não está a fim de saber com quem eu dormi, por quem eu estou apaixonado. Dessas situações eu posso fazer crônicas, por exemplo, não preciso da poesia para isso. Então gosto de algumas coisas. Algumas eu republicaria sem mexer. Mas uma autocrítica que faço é referente à pontuação: no livro de estreia eu usava muita vírgula, ponto-e-vírgula, e no final dos versos não precisa de vírgula! Então eu republicaria retrabalhando a pontuação.

[Insiram aqui, feito texto experimental, feito ouvissem em letras o áudio que transcrevo, o almoço que chega, um liquidificador que bate, o poeta pedindo uma pimentinha, talheres, cacofonia. Aproveito a deixa para dizer ao entrevistado como essa observação dele acerca das vírgulas, atentamente ouvida e absorvida, feito água na areia, em outras ocasiões, me levou a usar menos pontuação na minha própria poesia. Christovam completa, retomando o protagonismo que é seu por direito nessa entrevista:]

Eu acho que a vírgula é bem vinda, na poesia, dentro do verso. Hoje trabalho com vírgula e ponto dentro do verso e ponto final no fim de uma estrofe, ou no fim do poema, para mostrar ao leitor que aquele discurso acabou.

Você mencionou que considera escrever um trabalho. Como é o seu processo de criação? Eu acho a maior graça dos colegas que falam, tipo A Banda, do Chico Buarque, “eu tava à toa na vida e o poema me chamou…”, sabe? Eu trabalho com ideias. Tenho caderninhos espalhados pela casa, no criado-mudo, na mesa de trabalho, escrevo no celular também, e vou trabalhando com ideias que acho que podem render um texto, seja poema, seja prosa. Às vezes vou escrevendo algo e vejo que o discurso e a ideia são os mesmos de algo que eu já tinha trabalhado, e junto as coisas, quase como um trabalho de colagem. Na música tem a mixagem, e acho que na poesia é a mesma coisa, porque poesia é música.

Mas você tem uma rotina de escrita? Agora estou com um livro que considero pronto, só preciso trabalhar na organização dos poemas. Então estou trabalhando todo dia, para lançar este ano. Mas não tenho rigidez no meu trabalho. O João Cabral de Melo Neto, que eu amo, se obrigava a escrever todos os dias. Acho admirável isso, eu não tenho essa disciplina.

Aproveitando o gancho, quais são suas maiores influências? As duas grandes referências para mim, de poesia, são Ferreira Gullar e uma poeta que ainda está viva mas muito esquecida: Neide Archanjo. Esses dois para mim são dois orixás, são muito grandes. Com o Gullar eu tenho uma coisa engraçada porque descobri a poesia dele justamente numa aula de literatura. A gente estava trabalhando alguns poemas dele, incluindo um cordel que ele tem, vou citar de memória o título, depois você checa: Quem matou Aparecida [eu chequei: a memória de Christovam foi exata]. Quando li aquilo eu falei “Meu Deus, que coisa maravilhosa, que pena esse poeta estar morto”, isso no final dos anos 80, minha professora falou que não, que ele estava vivo, e eu respondi “Que maravilha! Porque a gente só estuda poeta morto…”. Eu cheguei em casa, morava com minha mãe ainda, e perguntei o que ela tinha do Ferreira Gullar. Ela, por sorte, tinha uma edição da obra reunida dele até então, eu mergulhei na obra, tinha uns doze para treze anos. Depois, na adolescência, descobri a Neide através de uma antologia que minha irmã mais velha tinha. Quando eu me apaixono por um autor, eu mergulho na obra dele, aconteceu com o Mia Couto, por exemplo, com a Neide, com o Cacaso.

E depois de adulto, depois de ter lançado seu primeiro livro, que autores você descobriu e impactaram sua escrita? Olha, me arrebatar para a vida, o Mia Couto. E, obviamente, há vários autores nossos contemporâneos que são também pessoas com as quais eu sinto que tenho um diálogo. Posso citar você [e eu, num triálogo com vocês, leitores, agradeço a menção do entrevistado. O diálogo, para além da entrevista e da relação profissional, é real, mas a gentileza de Christovam em me citar vai além da realidade: é generosidade], Viviane Mosé, o Victor Colonna, que eu acho extraordinário, não é à toa que dediquei a ele um poema… Ele tem um humor, uma acidez, uma crítica, que é muito especial. O Dênis Rubra, que no livro mais recente faz uma poesia política que eu acho necessária [É Muito Cedo para Pensar, Rubra Editora, 2017]. Ele me consultou, eu fiquei super honrado, perguntou se eu achava que ele devia lançar o livro, e eu disse “tem que lançar”. Porque com poesia política a gente corre o risco de soar panfletário ou datado. E com a poesia dele isso não acontece, ele resgata uma poesia política de Thiago de Mello, de Brecht, com uma dicção própria [novo triálogo: falando em poesia política, recomendei ao entrevistado e recomendo aos leitores o livro Ocupa, de Dimitri BR, Ed. 7Letras, 2016]. Voltando à sua pergunta, que eu tenha conhecido já amadurecido cito dois autores de prosa: Mia Couto, que já mencionei, e outra autora que na minha opinião precisa ser mais lida, discutida, mais lembrada, que é Miriam Campello, uma contista e romancista extraordinária, lamentavelmente esquecida. Estou sempre relendo, revisitando, então além dos contemporâneos tem Drummond, Cecília, Quintana, Hilda Hilst, em quem eu cheguei por causa do Caio Fernando Abreu… Esses autores fui descobrindo intuitivamente, porque um me levava a outro. Tenho loucura pelo Caio Fernando Abreu, é meu escritor favorito.

A Philos trabalha em diálogo muito intenso com as artes gráficas, dentre outras. Você sente influência de outras artes na sua poesia ? O tempo inteiro. Vamos lá nos primórdios, como diz a Marina Lima. Eu cheguei na literatura de Clarice Lispector e Fernando Pessoa por causa da dona Maria Bethânia, que lançou muitos discos ao vivo na década de setenta e tinha essa coisa de misturar a música com a literatura. Artes plásticas também é algo que me inspira muito. O Jorge Guinle Filho, toda essa galera que morreu de HIV me influenciou muito, coincidência, isso: Cazuza, Caio Fernando, um grafiteiro extraordinário chamado Alex Vallauri. Eu lembro de ir numa Bienal de Artes de São Paulo e ele tinha uma instalação chamada Rainha do Frango Assado, que era um apartamento com tudo grafitado, os móveis, tudo, e você ia passando pelos cômodos e chegava na garagem onde tinha um carro de verdade todo grafitado. Keith Haring também, esse pessoal fez muito a minha cabeça, tanto que quando eu era criança achei que seria artista gráfico, eu queria ser chargista. Acho que eu sempre soube que iria trabalhar com jornal, mas achei que seria chargista, não jornalista.

E você escreve prosa que não seja jornalística? Sim. Eu tenho um livro de prosa poética que ainda vou lançar. Não me atrevo a chamar de romance porque não tem uma narrativa, uma trama, são textos mais reflexivos, e tenho também cenas de teatro, crônicas, escrevo de tudo. Nas horas certas esses textos virão à tona (risos).

Você mencionou a importância da autocrítia para o trabalho do escritor. É comum os novos autores oscilarem entre extremos: ou têm em excesso, quase ao ponto de quase se paralisarem, ou não têm o bastante. Como é hoje sua relação com a autocrítica? Eu já fui mais autocrítico quando era mais jovem. Agora estou mais liberado, mais tranquilo, menos culpado. Algo que acho importante falar é que essa geração à qual a gente pertence tem que se liberar de uma preocupação que é a seguinte: a pólvora já está pra lá de inventada. O que se pode inventar, e que já está sendo feito, é a poesia dialogar com as novas tecnologias. Agora, em termos de invenção, expressão textual, poética, acho que tudo já foi feito. Eu estou brincando em um texto inédito, intitulado Remotivo, em que começo “Eu canto porque o instante existe / e minha vida está completa”,  e parto desses versos da Cecília [do poema Motivo] para falar da questão de gênero, não me importa se eu sou poeta, poetisa, bicho, artista, o que eu sou. É um tema que precisa ser discutido. E por que Cecília? Porque ela foi a primeira mulher, no Brasil, a romper com a nomenclatura de “poetisa”, o que reverbera em Hilda Hilst, Neide Archanjo, Olga Savary e outras autoras, que também se colocam como poetas. Mas acho que tudo já foi inventado. Eu percebo na minha própria literatura influências do Vinicius, da Cecília, do Gullar, de todo mundo. O que vejo em vários colegas, e isso me assusta, é essa pretensão de descobrir a pólvora. Uma crítica que eu faço é de que tem muita gente escrevendo e pouca gente lendo. Você fala “Nossa, isso é tão Adélia Prado” e a pessoa fica ofendida…

Falando de poemas inéditos, conta para a gente o que você quiser e puder do novo livro? Entre meu livro de estreia e o segundo, fiquei dezoito anos sem publicar, mas não sem escrever. Publiquei na revista da Biblioteca Nacional, na Ruas, da Unicamp, mas só esses tira-gostos. Eu acho que o livro tem que ter uma unidade, os poemas têm que conversar entre eles, não é um saco de gatos, “Ah, o que eu tenho de recente? Vou juntar tudo e publicar”. Basicamente o novo livro será formado de três pequenos livros. O título é Marulhos, outros Barulhos e alguns Silêncios. Eu gosto de títulos grandes. O Marulhos reúne poemas que têm em comum o mar como inspiração e tema, e na verdade esse mar é a metáfora de um amor. Eu vivi recentemente uma relação com um capitão da Marinha e esse livro é uma resposta, uma catarse para esse amor que cumpriu seu ciclo. O segundo livro se chama poema gris, que é quase um jogo de montar: são textos sem título, que podem ser lidos separados e podem também formar uma narrativa, um discurso poético de mais fôlego. E vou trazer também outros textos, um que fiz em homenagem a Fernanda Fernandes, nos trinta e cinco anos de carreira dela, um texto que fiz para Laura Finocchiaro, textos em homenagem. É isso que vem por aí. Quero lançar em setembro, mas se ficar para 2019 ainda vai estar dentro da comemoração de vinte anos de carreira…

[Oxalá, Iemanjá, Oxum e todos os orixás não permitam que o novo livro de Christovam demore! Enquanto isso, os leitores da Philos leem em primeira mão, na seção de poesia neolatina deste mês, três poemas inéditos de Marulhos, outros Barulhos e alguns Silêncios.]


Christovam de Chevalier (Rio de Janeiro, 1976) é poeta e jornalista. Publicou Um Livro sem Título (7Letras, 1998) e No Escuro da Noite em Claro (7Letras, 2016), além de figurar na antologia É Agora Como Nunca, organizada por Adriana Calcanhotto (Cia. das Letras, 2017). Publica a coluna Parada Obrigatória todas as quintas-feiras no jornal O Globo.

Thássio Ferreira (Rio de Janeiro, 1982) é escritor e editor-associado da Revista Philos.

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