Não olhe agora, mas tem um punhado de rosas, um macaquinho e um útero cortado olhando para você.  Não é uma exposição da Frida Kahlo, é a superfície de um espelho que foi colocado na sua frente e, que, neste exato momento, espera interação. Eu sei. É preciso falar de outras coisas também, de instintos, de ferocidade, de sobrevivência, de direitos, só não de bestialidade. Você já aguentou demais. Tem aguentado demais. Melhor falar de Frida. E das mulheres. E do momento em que estamos tão expostas que fomos expulsas do museu por atentado ao pudor.  Agora somos uma exposição ao ar livre. E falar da Frida por quê? Porque ela virou cool? Porque seus lábios cerrados e olhos bem recobertos ilustram cadernos, agendas, mochilas? Porque virou ícone de manifestações feministas? Ou será porque ela é uma das maiores representantes da arte latino-americana? Tudo isso. Ou nada disso… talvez ela não aprovasse. Nós, as mulheres do pós-tudo, temos visto passar, vertiginosamente, os dois últimos dígitos do milênio. Ao mesmo tempo, queremos mostrar ao mundo nossos talentos (como Frida), queremos experimentar nossa sexualidade (como Frida), queremos amar e ser amadas (como Frida). Mas espera, queremos tais obviedades, mas não queremos sofrer como Frida, certo? Afinal uma lança perpassou seu sexo, um amor algoz lancetou seu coração, um corpo mutilado impediu alguns de seus mais fortes desejos. Não. Não precisamos mais da via sacra. Não queremos nenhum soldado romano nos oprimindo. Ela, nossa cordeiro de Deus (existe cordeiro no feminino?), já fez o caminho. Como um cristo de saias bordadas, mostrou as nossas chagas, o nosso corpo crucificado, ressuscitado pela arte. Agora ela olha para nós bem de frente dizendo: “eu, mulher, latino-americana, passei por dor, traição, sexismo, preconceito e  ainda assim morri feroz, morri por vós. Eu as liberto. Eu vos dou a minha chama”
Se falo de Frida é por isso, porque a vejo como símbolo. E como todo símbolo, dirige-se a todos e a cada um em particular. O que mais chama a atenção? O útero cortado? As rosas? Ou o olhar meio humano meio selvagem de um macaco? Em qualquer um emerge Frida, a força avassaladora que vai além do sofrimento, além da norma. Dizem que até no crematório ela fez a sua última instalação artística, com os cabelos em chamas como girassóis. Haja pulsação, haja presença. Olhando em um ponto, bem no meio de sobrancelhas grossas está o espelho. E dentro dele, o nosso reflexo, com buço, roupas típicas, feridas, desnudamentos, desdobramentos, rendas, chagas e flores. Uma mescla de abstrações e concretudes que pode explicar o desejo de Frida Kahlo de “nunca mais voltar”. Ou se preferirem, a vocação e o talento que a obrigaram a ficar para sempre.


Adriana Calabró (São Paulo, 1968). Escritora, dramaturga, coach de escrita, premiada no Concurso João de Barro de literatura infanto-juvenil, finalista nos concursos Off Flip e Livre Opinião, ganhadora da Bolsa de Criação Literária o ProAc do Governo do Estado de São Paulo.

Publicado por:Philos

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