A poesia pode fazer parte da vida da criança desde muito cedo. O bebê é embalado com cantigas que são pequenos poemas folclóricos, os acalantos. Isso faz parte da cultura de muitos países, em especial, do Brasil, com uma herança folclórica diversificada, pelos povos dos quais herdamos tantas tradições populares. Mais tarde, cantigas de roda, trava línguas, quadrinhas, adivinhas, parlendas e outras modalidades de poemas da oralidade são transmitidos às crianças de pouca idade. Ora na família, ora na escola. E até mesmo em espaços de socialização: na rua, praças, áreas de lazer.
Se isso não acontece na vida familiar, há uma perda para a criança do contato com a música das palavras. E uma perda da afetividade que um adulto experimenta ao cantar, declamar versos para a infância. Os poemas transmitidos pela oralidade trazem um trabalho com as palavras, com um peso na musicalidade dos versos. Interessa brincar com sons e ritmos, o uso de non sense e coisas irracionais, como uma vaca que toma guaraná de canudinho, um vampiro que gosta de açaí e não de sangue. Seja lírico, seja humorado, o poema transita num território de fantasia e de sonho. E quem vive sem isso?
Quando a criança vai para a escola, a poesia marca presença em atividades lúdicas, com a recitação de versos, cantigas etc. Há brincadeiras para os grupos de alunos, que lidam com as partes do corpo, o aparecer/desaparecer objetos e seres. Sons de animais e de coisas da vida cotidiana marcam o emprego da onomatopéia que muito agrada à criança.
Na medida em que ela cresce, há certo distanciamento da poesia. Por que a poesia não faz parte das leituras das famílias? E por que os professores têm dificuldade em ler poemas para e com as crianças? Adquirem-se muito mais livros em prosa do que em versos para as bibliotecas escolares.
Claro que se seguimos oferecendo versos às crianças e aos adolescentes, de forma lúdica, sem cobranças, eles vão apreciar. Basta pensar na relação do jovem com o funk, o rap, o samba, o roque. Eles gostam do embalo, do ritmo e da melodia. Isso é importante para a consolidação de valores identitários, como a aceitação da mudança na voz, o corpo em crescimento. E importante também para se lidar com as diferenças entre as pessoas e as transformações subjetivas que enfrentamos. A poesia (diferente da prosa) está mais ligada aos sentidos, às percepções.
Quando lemos os poemas do Fernando Pessoa e dos seus heterônimos, experimentamos algo que nos conecta com os muitos eus que nos constituem. Para o adolescente, esse brincar de ser outra pessoa, o jogo de ser ora um ora outro é o jogo da própria vida com suas contradições e ambiguidades. Sem falar na importância do jogo e da brincadeira na vida de uma criança. Ela não viveria sem isso. É por meio do brinquedo que a criança se realiza como pessoa. O tocar, o experimentar, o fazer de conta são experiências que a poesia oferece ao adolescente e à criança.
A obra organizada pelo poeta Leo Cunha, Poesia para crianças, conceitos, tendências e práticas, reúne seis artigos de cinco autores sobre a poesia para a infância. O livro traz capítulos autônomos que podem ser lidos separadamente, mas que tratam de conteúdos que estão relacionados à poesia na vida da criança. Logo, um capítulo pode completar outro.
A poetisa Ângela Leite de Souza abre o primeiro capítulo com uma reflexão sobre conceitos como poesia, poético, infantil. Isso pode ser esclarecedor para os professores e educadores, bem como pode instigar uma reflexão sobre o fazer poético.
No segundo capítulo, o também poeta, e professor, Carlos Augusto Novais nos transmite uma aula sobre aspectos da arte dos versos como rima, métrica, figuras de linguagem. São os elementos constitutivos de um poema. O que caracteriza a poesia e a distingue da prosa? Essa e outras questões são aqui tratadas.
O terceiro capítulo, a cargo do organizador da obra, o escritor Leo Cunha, trata das dificuldades do livro de poesia no mercado editorial brasileiro. Leo ainda desenvolve comentários sobre as principais manifestações poéticas presentes na produção do nosso país. Por que é difícil publicar textos em versos? Como a escola é grande compradora de livros para a infância e a juventude, há certos obstáculos no trabalho com os versos. Isso porque, muitas vezes, espera-se que o aluno entenda e interprete o poema, o que é tarefa quase impossível. A poesia não serve para isso, mas para ser desfrutada sem muitas explicações.
O capítulo 4, assinado pela poetisa Glaucia de Souza traz algumas atividades a serem realizadas em sala de aula. Ela defende três pilares para o trabalho: a percepção, a discussão e a criação. Ou seja, a poesia não é para ser interpretada, mas vivida com leitura e sensibilidade.
Os dois últimos capítulos, da autoria da professora Maria Antonieta Cunha, trazem um olhar sobre a prática. Por um lado, ela propõe alternativas para o professor aprofundar a relação com o texto poético. Por outro lado, apresenta critérios para se selecionar obras de poesia. Não são as rimas que unicamente caracterizam a poesia. Escolher um livro de poemas demanda reconhecer, nos versos, as imagens, os sons e um rol de associações sensitivas.
A primeira obra publicada exclusivamente sobre poesia infantil de estudiosa brasileira que temos notícia é Poesia infantil, da professora gaúcha Maria da Glória Bordini, publicada em 1986, pela editora Ática (São Paulo). Sucinto, o livro introduz o leitor no mundo da poesia para a infância. Foi uma referência para estudantes de letras e pedagogia durante muito tempo, bem como para professores e educadores.
Em 2002, foi publicada Poesia infantil: o abraço mágico, da autora catarinense Eloí Elisabete Bocheco, pela editora Argos (Chapecó, SC). De circulação menos divulgada, esta obra não ficou tão conhecida, infelizmente, nem no meio acadêmico, nem no meio escolar. Merece a leitura porque é uma referência na área da poesia infantil, ao colocar a poesia no patamar de reconhecimento da prosa. Também em 2002, tivemos a publicação A poesia na escola: leitura e análise de poesia para crianças, organizada por Ana Elvira Gebara, pela editora Cortez (São Paulo). O destaque desta obra é o estudo feito sobre a obra do poeta José Paulo Paes que nos deixou poemas de qualidade estética para a infância.
Em seguida, em 2003, o poeta mineiro Elias José publicou, pela editora Paulus (São Paulo): A poesia pede passagem: um guia para levar a Poesia às escolas. Com muita afinidade com a poesia, uma vez que Elias publicou dezenas de livros com poemas para crianças, jovens e adultos, sua obra transita com informalidade na escola. Derruba certos padrões, como o de utilizar a poesia para ensinar gramática e propõe um uso menos didático dos versos.
Em 2007, o professor Hélder Pinheiro sistematizou, em Poesia na sala de aula (pela editora Bagagem de Campina Grande, PB), uma série de sugestões de atividades com os versos, desde jogos dramáticos a varais poéticos.
Neusa Sorrenti, compositora e poetisa, publicou, em 2010, A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades, pela editora Autêntica (Belo Horizonte). Obra com reflexões e sugestões para o trabalho com os versos na escola.
Logo em 2011, a escritora Gloria Kirinus publica Synthomas de poesia na infância, pela editora Paulinas (São Paulo). A criatividade da criança tão comprometida na contemporaneidade é discutida pela autora que propõe a poesia para aguçar o senso de sensibilidade e de criação na infância.
Com isso, percebemos que a poesia foi abordada eventualmente em livros de referência, ao passo que há centenas de livros que discutem a prosa para as crianças. Com certa dificuldade, temos um livro dedicado exclusivamente a este gênero. Logo, a obra organizada por Leo Cunha representa um marco na história da literatura infantil brasileira. Vencedora do Prêmio de livro Teórico da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, em 2013, a obra foi adquirida pelo Governo Federal, MEC, para o PNBE do professor 2013, distribuída para escolas públicas de todo o país.
Na nossa literatura, temos uma gama de poetas que se dedicaram à infância, como Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Elias José, José Paulo Paes, Roseana Murray, Leo Cunha, Ricardo Azevedo. E ainda poetas que escreveram para adultos e experimentaram os versos para os pequenos leitores: Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Ferreira Gullar. Seus poemas carecem de ensaios que possam discuti-los!
Precisamos mesmo de estudos de e sobre poesia infantil, que possam ser publicados e divulgados nas escolas e instituições educacionais e culturais, e às famílias. E que os estudos acadêmicos possam igualmente ser conhecidos dos profissionais que lidam com as crianças. Afinal, a poesia traz possibilidades de entretenimento, de jogo, de associações e de contato com o não explicável, o não racional que caracteriza a nossa vida.
Ninfa Parreiras (Itaúna, Minas Gerais, 1970). Mestre em Literatura Comparada (USP), graduada em Letras e Psicologia (PUC RIO), psicanalista titular da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, escritora de obras literárias e de ensaios, pesquisadora e curadora de eventos.
Bibliografia
BOCHECO, Eloí Elisabete. Poesia infantil: o abraço mágico. Chapecó, SC: Argos, 2002.
BORDINI, Maria da Glória. Poesia infantil. São Paulo: Ática, 1986.
CUNHA, Leo (org). Poesia para crianças, conceitos, tendências e práticas. Curitiba: Piá, 2012.
GEBARA, Ana Elvira (org). A poesia na escola: leitura e análise de poesia para crianças. São Paulo: Cortez, 2002.
JOSÉ, Elias. A poesia pede passagem: um guia para levar a Poesia às escolas. São Paulo: Paulus, 2003.
KIRINUS, Gloria. Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas, 2011.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. Campina Grande, PB: Bagagem, 2007.
SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.