Ao longo dos últimos anos, testemunhamos uma profunda revisão histórica feita a partir de um ponto de vista decolonial que busca compreender as violências epistemológicas constitutivas da história da arte. No bojo dessa mudança, tem papel fundamental o movimento das artistas mulheres rumo a um crescente protagonismo. Notemos, no entanto, que a categoria “mulher” não deve ser tratada como universal, pois se encontra sempre delineada por diferentes marcadores sociais, geográficos e temporais que transformam sensivelmente a experiência feminina.

A exposição “Protagonizando a cena”, de Priscila Rooxo, na Galeria Francisco Fino, se insere nesse contexto. As obras aqui reunidas trazem consigo visões do espaço no qual mora a jovem artista, nascida em 2001, em Mesquita, Baixada Fluminense, região periférica do Rio de Janeiro. Mas, ao contrário das representações muitas vezes perpetuadas por um olhar branco sobre tais universos, Rooxo, ao retratar o meio em que vive, o faz encorajada  não por um discurso de violência, pobreza e dor, e sim pela afirmação tanto do direito à  diversão e à cidadania, quanto das formas de trabalho e sociabilidade ali existentes.  Ou seja, a artista contraria as expectativas e nos endereça uma narrativa escrita sob a égide do anseio por um presente e um futuro diversos daqueles que desde sempre foram escritos para mulheres de sua origem. [1]

Priscila Rooxo, Protagonizando a cena (2023)

As pinturas de Rooxo nas quais são retratadas cenas do seu cotidiano — as roupas, as referências ao universo do funk, a dança, a conversa na calçada com cerveja e churrasco, a praia com as amigas, o cuidado com as crianças, o trabalho — recordam que “o pessoal  é político”. É através da observação minuciosa dos hábitos que compõem sua vivência e a daqueles que a rodeiam que Rooxo edifica sua obra e doa para ela uma singular voltagem crítica. Estamos diante de uma artista-etnógrafa cujo objeto de estudo é o próprio meio.

Subvertendo as expectativas quanto à representação daqueles que foram sempre invisibilizados, Rooxo se propõe a mostrar não só o que é, mas o que poderia ser. Na série de pinturas intitulada “Família”, por exemplo, o ponto inicial é uma pergunta feita pela artista a seus parentes: como eles gostariam de ser retratados? Assim, Rooxo faz da identidade não algo fixo, mas sim um trânsito fluido entre a dita “realidade” e a imaginação. Esse modo de proceder inclui algo de uma ética do cuidado com a própria obra e com aqueles que a rodeiam, sentimento que permeia também a série intitulada “Suporte Caro”.

Priscila Rooxo, Protagonizando a cena (2023)

O deslocamento dos papéis esperados prossegue nos trabalhos que colocam em xeque o próprio meio da arte e sua relação com a presença, recente e disruptiva, de sujeitos que até pouco tempo estavam completamente ausentes de uma paisagem quase sempre elitista, branca e masculina. Tal movimento é visto tanto nas telas nas quais a artista está retratada, quanto na série fotográfica “Essa você compra?” e no letreiro “Você aceita uma  mina aqui?”. Em todas testemunhamos a indagação sobre o estranhamento e o temor que o  corpo de uma mulher periférica altiva —fora do esperado papel de coadjuvante silenciosa— causa nos ambientes do chamado “mundo da arte”. Em “Essa você compra?”, Rooxo  dobra a aposta e faz do próprio corpo o centro da cena, devolvendo como um bumerangue para cada um de nós a imagem objetificada da qual tantas vezes é alvo.

Se é verdade que o ato de dar “voz”, “espaço”, “atenção”, “ouvidos” àqueles que nunca tiveram visibilidade se tornou parte do jogo da arte contemporânea, fazendo da alteridade muitas vezes uma commodity, também o é a fundamental transformação estrutural pela qual vem passando o circuito de arte com a entrada em cena de artistas como Priscila  Rooxo. [2] A presença de sua obra em uma galeria de Lisboa instaura um encontro entre  opostos que nos inspira uma lembrança: aquela que nos diz que uma possível saúde do corpo social não será garantida por uma respeitosa distância, mas ao contrário: será na incômoda e conflituosa proximidade que poderemos, enfim, despertar para o outro e,  assim, imaginarmos novos e inauditos modos de viver juntos.


Priscila Rooxo (Rio de Janeiro, 2001) vive e trabalha em Mesquita, Rio de Janeiro. Com apenas 17 anos, Rooxo recebeu uma bolsa de estudos em Pintura pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Em 2021, ingressou na Escola de Belas Artes  da UFRJ, onde frequenta o curso de Artes Visuais, ao mesmo tempo em que mantém a  colaboração regular com organizações e movimentos cívicos, entre as quais, a Rede NAMI Rede Feminista de Arte Urbana. Em setembro de 2022, a artista, uma das mais jovens e promissoras a trabalhar atualmente no Brasil, recebeu o Prêmio FOCO, na ArtRio, no âmbito da exposição individual “A Mãe ta On”. A sua obra reflete sobre questões territoriais, de género e de classe que marcam a região onde vive e trabalha, conhecida pelos altos índices de violência e criminalidade, assim como pela carência de serviços básicos e infraestruturas. Radicadas numa prática ativista  e crítica, as pinturas de Priscila Rooxo exploram temas como a pobreza, a exclusão social, o reconhecimento do papel da mulher na sociedade, o corpo periférico e a sua relação com ideias de pertencimento e visibilidade social, subvertendo as habituais classificações da  cultura e as distinções, nomeadamente entre alta cultura e cultura de massa. A prática de Rooxo é visivelmente influenciada pela ‘pichação’ (graffiti) e pelas manifestações culturais commumente associadas à periferia carioca. Recentemente, participou na exposição coletiva “Histórias Brasileiras”, no MASP – Museu  de Arte de São Paulo. Em março de 2023, inaugurou a sua primeira exposição individual na Galeria Francisco Fino, “Protagonizando a cena”.


[1] O começo da trajetória de Priscila Rooxo se deu em estreito vínculo com a Rede NAMI  (Rede Feminista de Arte Urbana), criada pela artista Panmela Castro, de quem Rooxo foi  assistente. Castro está retratada em uma das telas presentes em “Protagonizando a  cena”. [2] Sobre o lugar do “outro” no debate atual da arte contemporânea ver: “Disothering as  method” [LEH ZO, A ME KE NDE ZA], de Bonaveture Soh Bejeng Ndikung. In: Catálogo da 21  Bienal Sesc Vídeo Brasil_Comunidades imaginadas, curadoria de Solange Farkas, Gabriel  Bogossian, Luisa Duarte e Miguel López, Editora Sesc, São Paulo, 2019.

Publicado por:Philos

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