Como se conta uma história de mil passos, que desgasta a sola do pé e as palavras? Quem guarda a história de um corpo, de dez, cem, mil corpos? Se eu começar a dizer cada lembrança das terras onde o céu e o chão brilham até chegar nas rodovias modernas, onde o GPS fala perpetuando a repetição desse movimento internalizado por gerações, alguém vai escutar? Mas quem está disposto a escutar, escutar com os ouvidos, sem a língua se metendo entre os dentes e o coração atento? A artista Luiza Branco, de 25 anos, nos joga em rotas de colisão através de seus trabalhos, onde as perguntas evocam sonhos forjados, revoltas silenciosas e alegrias guardadas em dias distantes do hoje, mas que interferem diretamente na maneira como transitamos pelo mundo.
A primeira vez que conversei com Luiza Branco foi em meados de 2017. Era noite, eu em casa, ela em São Paulo, fiz algumas perguntas pelo Whatsapp na intenção de mapear os caminhos pelos quais a pintora dava indícios de querer seguir. Já nessa época, o preto e branco apareciam intrínsecos às telas e realidades pintadas por ela. Naquele momento também, as texturas, mistérios e lembranças estavam começando a dar pistas que seus percursos criativos cruzariam, em pouco tempo, com os processos de entender seu corpo em meio à nova cidade. As respostas dela às minhas indagações visitaram o passado, as conversas com mulheres fortes que atravessaram sua vida e a energia da criança que nunca parou de desenhar.

Na segunda vez que conversei com Luiza, também era noite, o contexto era diferente, mas os lugares eram os mesmos, eu estava novamente em casa, e ela continuava em São Paulo. Nos falamos por vídeo e, agora, tudo havia se metamorfoseado. Nas primeiras trocas de palavras da artista já pude vislumbrar: durante os anos que passaram, ela tinha andado fora das curvas óbvias que seu trabalho poderia vir a percorrer. Sua rotina de produção ainda passeia por acúmulos de memórias, mas seus processos criativos atravessam uma amplitude maior de corpos. Noto ali que as vozes presentes na interlocução estavam mais seguras, cientes de si.
Quando ouço sobre seus estudos atuais acerca do Nordeste, penso nos seguintes versos, que ecoam em minha mente:
Quando o sol se põe,
o preto e branco caminham sobre a terra
tomando as faces do breu e da lua
Das 18h às 6h
eles são capazes de reviver memórias
ao flertarem com o ar melancólico
evocado pelas brisas noturnas
Esses encontros são capazes de revelar sonhos
e angústias
que as noites que findaram entregam ao esquecimento
as pessoas
recorrem ao conforto das penumbras, mas sabem:
um dia
seus corpos também serão envolvidos
pela névoa das lembranças.
Às vezes Luiza me parece pegar a energia de encontros entre o real e a ficcionalização e estendê-los nas suas telas, tirando das sombras perspectivas mais coerentes sobre estar no mundo e ser nordestina(o). Atualmente, a pintora tem sido levada por suas inquietações à Canudos. Em trabalhos mais recentes, ela busca cavar novas rodovias sobre a historiografia da região, revogando estéticas ultrapassadas na representação de narrativas seculares. A intenção de seus gestos aponta para a ligação direta de causalidade entre o que já se foi e o que se é, lembrando ao espectador que é preciso estar atento, pois o Nordeste nunca se rendeu.

Esse artigo faz parte da coluna dos nossos parceiros da Revista Propágulo, de Pernambuco. A Propágulo é um coletivo de realizadores e pesquisadores das artes visuais, que direcionam seus estudos para curadoria, crítica, jornalismo, design e produção de eventos. Aqui, na Philos, eles estarão abordando seus atravessamentos a partir desses pontos de vistas. Sigam o projeto no Instagram da @propagulo.