A madrugada estava calma, apenas grilos e cigarras sonorizavam o ambiente. De cócoras, ao lado de uma lata com água que ferve fumegante no fogareiro feito de tijolos, aguardava a galinha, degolada, para depená-la. Enquanto isso, a panela de barro no fogão a lenha já fervia a água para o café. Minha mãe, com ar deprimido, não diz uma palavra sequer desde a noite anterior. Meus irmãos ainda dormem, provavelmente não verão a minha partida.
A galinha já está na farinha. Minha sacola, com três mudas de roupa, me aguarda na soleira da porta. Ainda sob a luz do lampião, calco a galinha na lata de leite em pó que foi lavada e seca para o transporte da refeição. Em outra sacola, armazeno a rapadura, beiju e mais farinha; quantidade suficiente para os próximos cinco dias. A viagem será longa, e meu coração apertado não consegue disfarçar a tristeza em deixar o meu sertão. É que as coisas aqui não estão muito fáceis. As chuvas têm demorado, há meses não cai um pingo d’água. O feijão armazenado está prestes a findar; a miséria começa a assolar nossas vidas. Buscar oportunidade na Capital da Esperança e ter fé que dias melhores virão me mantém firme na decisão.
Levo as sacolas ao ombro. Antes de cruzar a porta, minha mãe, aos prantos, soluça incontrolavelmente. Sua boca treme, sem pronunciar uma só palavra, e seus olhos vermelhos imploram que eu não me vá. Dou-lhe um beijo na testa. Prefiro pegar o pau de arara sozinho, antes do surgimento do arrebol, pois não suportaria vê-la chorando por tanto tempo. No caminho, não ouso olhar para trás. Sinto um arrepio estarrecedor. Tarde demais para desistir.
No balançar do pau de arara, estão todos calados. Pode-se perceber a tristeza nos olhares. Fico me perguntando se tenho essa aparência, se está tão patente o pavor que sinto. Ao raiar do dia, é possível reconhecer alguns rostos, mas o nó que sinto na garganta impede que eu os cumprimente. Com eles, deve acontecer o mesmo, pois só balançam com a cabeça. Logo chegamos ao local onde trocamos de carro. Em comboio de ônibus, seguimos caminho até a região do Planalto Central, onde uma nova história terá seu início. A esperança e a desconfiança permeiam meus pensamentos. Penso nos meus familiares que ficaram para trás. Desejo que cheguemos logo ao destino. A galinha já está quase no fim e a rapadura foi a primeira a acabar.
Há dias não durmo. Pela janela do ônibus, já não reconheço a vegetação. Curioso, não paro de olhá-la. Contrasta com os grandes centros, onde são admiráveis as construções de alvenaria; mas o que me chama mais atenção são os grandes letreiros. Como gostaria de saber o que eles dizem! Pessoas elegantes caminham e conversam. Bonitas e empertigadas mulheres distribuem charme pela cidade. O sono chega, mas mal cochilo. Informações de que estamos chegando começam a rondar nas conversas dentro do ônibus. Meu coração palpita a cada instante que penso estar próximo.
Continuamos viajando pela longa estrada que parecia não ter fim. Finalmente somos informados pelo responsável do comboio de que havíamos chegado. Depois de horas, talvez – não sei ao certo – depois de tantos dias… Perdera a noção do tempo. Pela janela, só se veem caminhos ermos de terra vermelha e sem vegetação. Chegamos a um canteiro de obras. Grandes estruturas de ferro brotam da terra. Homens sujos de massa e cimento vão de um lado a outro. Alguns de paletó e capacete fiscalizam o serviço. Somos levados a uma tenda para cadastro. O dia se fora, e minha barriga – como uma forrageira – ronca sem parar. Depois de cadastrados, o encarregado nos serve um copo de caldo e um pedaço de pão murcho – a minha primeira refeição do dia. Toda a minha comida havia acabado na noite anterior.
Estávamos deslumbrados pela possibilidade de trabalho e atraídos pela proposta de boa remuneração. Assim todo esforço valeria a pena. O encarregado, que nos acompanhara desde o primeiro dia de viagem, levou-nos à chamada “Cidade Livre”, onde viveríamos em pequenas construções enfileiradas, de madeira, com chão de barro vermelho batido. No único cômodo, uma esteira de palha descansa sobre um jirau de madeira que serve para dormir. Meu corpo está moído pela viagem, com as costas latejando e os olhos em ardor, como se tivessem areia. Sem tirar os sapatos, deito na estrutura, me apagando num sono merecido.
Os dias foram passando numa rotina cansativa. Mal tinha tempo de me lembrar da minha terra. Uma vez por semana, nos visitava a carteira da obra, uma bela jovem letrada, que nos trazia as cartas dos familiares. Em um desses dias, sem outros por perto, abordei-a para confessar que não sabia ler. Por isso, nunca enviava respostas aos meus. Desde então, ficamos, ela e eu, depois do expediente, lendo, estudando e respondendo as cartas de minha mãe. Já conseguia entender os letreiros nas placas, mas ainda não me arriscava a escrever. Então, quem escrevia as cartas ditadas por mim era a jovem letrada. Queria muito falar para minha mãe o quanto a jovem era bonita, inteligente e doce, mas tinha vergonha de ditar-lhe tais informações, então citava apenas superficialidades.
Faz três anos que saí do meu sertão. A saudade é muito grande. A Capital Federal tem tomado forma; grandes construções e monumentais estruturas saem do chão. Políticos, empresários e curiosos estão sempre presentes no canteiro de obras. Os peões são de todas as regiões do Brasil, todos com o mesmo sonho. Ouço o tempo inteiro falarem de progresso, mas eu só queria mesmo era voltar para o meu Ceará e levar a minha jovem amiga letrada com quem me divirto. Temos nos encontrado com frequência e aprendi muito ao seu lado. Já escrevo sozinho e penso até em voltar a estudar.
Em meados de abril, passeávamos pela cidade em festa. Embora muitos prédios ainda estivessem apenas no esqueleto, o Presidente, junto aos candangos, festeja ruidosamente a inauguração da cidade. Assim nasce Brasília – a Capital da Esperança. De frente ao Palácio do Planalto, avistamos JK, sacudindo o chapéu. No rosto, um sorriso satisfeito. A seu lado, pessoas importantes e influentes completam a paisagem, além de muitos militares que, numa sincronia perfeita de movimentos, adornam o ambiente. De mãos dadas com a minha jovem amiga letrada, ouvi de seus lábios a afirmação: “o progresso chegou e não nos alcançou”. Retiro-me do lugar com a sensação de dever cumprido, de ter perdido minhas raízes, e arraigado aqui a minha nova vida. Minha mão calejada aperta a dela. Nos lábios, um sorriso forçado e, nos olhos, uma lágrima de tristeza.
Quem um dia vai se lembrar do João Ninguém que aprendeu a ler, casou com a jovem letrada e construiu Brasília?
Aurilene Sampaio (Itapipoca, 1982). Professora da rede estadual de ensino, nas horas vagas abstrai escrevendo e pintando.
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