O mundo apresentado é aceito como sendo o mundo real.
Acabo de ler um pequeno livro fantástico: A sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Não vou fazer propriamente uma resenha do livro, embora trate, aqui e ali, de algumas de suas ideias. Ou do que interpretei como sendo as ideias do livro. Digo isso porque o texto não é simples, está escrito ao estilo de Nietzsche, em parágrafos que delimitam insights particulares, completos em si mesmos, e não como uma teoria formulada passo a passo ao longo da obra. Pra completar, a linguagem é extremamente figurada, o que sujeita sua compreensão a um esforço interpretativo intenso do leitor.
A imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo.
Ilustrando essas dificuldades iniciais, Debord, por exemplo, não define o que é a sociedade do espetáculo. O livro inteiro são tentativas de lançar luzes sobre suas características, sem que, no entanto, se chegue a um conceito bem delimitado, ou sequer a uma tentativa de conceituação. A primeira impressão que se tem é que o espetáculo é a mídia moderna. Ou melhor, que a mídia moderna é um instrumento da sociedade do espetáculo. Essa sociedade representaria o ápice do capitalismo, o momento em que o sistema capitalista vira imagem constante, executada num “presente eterno” para o conjunto de seus espectadores.
Ao criar o espetáculo, ocorre uma verdadeira cisão: agora há um mundo – representado pelas mídias – dissociado do universo das pessoas. Esse novo mundo se apresenta como o verdadeiro mundo, como a realidade da vida, como o que se deve ser e desejar. Essa divisão não é notada pelo espectador, que passa a adotar a visão do espetáculo como sendo o real, de maneira que sua própria existência deixa de ter qualquer significado. O sentido de existir não é mais uma indagação do sujeito, mas uma imposição de terceiros, imposição que não é questionada. A imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, diz Debord.
Aquilo que o espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não existisse. Ele fala então de outra coisa, e é isso que, a partir daí, afinal, existe.
Guy Debord
De fato, é impressionante a passividade do espectador diante do espetáculo. O mundo apresentado é aceito como sendo o mundo real. Não costumamos nos atentar para o fato de que o apresentado são trechos, partes do mundo real. E que são partes escolhidas para serem apresentadas. Alguém efetua uma escolha sobre o que apresentar aos espectadores, mas não se questiona, no final, por que se fez tal escolha, e não outra. A se acreditar nessa escolha, o mundo necessariamente é visto como uma sequência de tragédias e atos violentos, um eterno lançar de mísseis entre israelenses e palestinos.
É claro que o mundo também é isso, mas não exclusivamente. Quando não se questiona a escolha, o espectador se aprisiona na visão de mundo dos outros e passa a agir como se o mundo fosse tão somente violento, como se se devesse desconfiar sempre da raça humana e tantas outras maneiras distorcidas de enxergar a realidade. Sem perceber, agimos influenciados pela visão do espetáculo. Debord não aprofunda a análise desses aspectos, diríamos “sociológicos”, porque está mais preocupado com a lógica do espetáculo como instrumento do capitalismo.
O espetáculo promove a uniformidade que deixa o espectador psicologicamente atado a sua ideologia. Segundo Debord, o sujeito vive na falsa consciência da realidade, que é o espetáculo, já que a realidade em si está impedida de vir à tona. O fascínio que o espetáculo exerce, seu poder, seu alcance criam a sensação de que ele é o detentor da verdade. De que sua visão de mundo é a única visão de mundo possível, de que seus valores são os valores das pessoas. O espetáculo é um rolo-compressor de individualidades.
No campo dos costumes, isso ainda é mais flagrante. O autor também não entra em detalhes sobre o assunto. Mas é evidente que os que vivem no seio de uma sociedade capitalista são bombardeados pelas imagens de como o indivíduo deve ser, como deve se vestir, que produtos tem que possuir (a mercadoria, segundo Debord, substituiu insidiosamente a necessidade biológica de sobrevivência, mantendo seu apelo), que padrão estético deve apreciar, que locais precisa visitar. O espetáculo oferece todas as respostas, e o indivíduo, confortável em sua preguiça intelectual, vai engolindo tudo sem questionar. Não é preciso ir muito longe para observar como os comportamentos, de modo geral, são a imitação desse modelo espetacular.
E é óbvio, estar no olho do furacão, ser apresentado pelo espetáculo ao espectador, torna-se a realização suprema do sujeito que não questiona o espetáculo, mas que, ao contrário, está inserto em sua realidade paralela. Não é necessário realizar mais nada de realmente importante para se viver o frisson da exposição. Basta, por exemplo, participar de reality shows como o Big Brother Brasil. A ascensão social é imediata, sem requisitos. Feios tornam-se belos de um segundo a outro; “fãs” surgem do nada. O mundo real, e todas as suas benesses, se oferece incondicionalmente ao indivíduo que colocou os pés na realidade irreal – no entanto, real para os iludidos.
Debord faz também uma análise sobre a mercadoria, mas, provavelmente por não ter presenciado o momento atual, não levou o raciocínio até as últimas consequências. Teria visto, nos dias de hoje, que tudo é produto. Que tudo é realizado nos moldes capitalistas. Que até em hospitais, o atendimento é realizado segundo procedimentos típicos de uma indústria. Que médicos se parecem cada vez mais com operários: não se vê em seus olhos mais uma preocupação genuína com seus pacientes. Sem falar nos absurdos que advém da necessidade de se ser dono de posses para ter acesso a esse médico-proletário.
E quando tudo é mercadoria, que escolha resta ao indivíduo?
Todos os empregos imagináveis, inclusive os intelectuais, viraram linhas de montagem. Montagem de textos, de discursos, de partes do corpo, de qualquer coisa que se imaginar. Não há diferença alguma – a não ser no campo da autoafirmação orgulhosa de algumas carreiras – entre o cara que executava uma única ação no fordismo e qualquer trabalhador, de qualquer área, do mundo atual. Os médicos são só o exemplo mais flagrante. A alienação, agora, é generalizada; não pertence propriamente a uma classe restrita. E é claro que o motor dessas ações, muitas vezes insuportáveis para certos espíritos, é o espetáculo. Porque ele precisa de você para consumir. Porque ele te ensinou que só isso importa.
Mas não para por aí. Debord teria visto, no mundo atual, que pessoas também se tornaram produtos. A forma de seus corpos, diz-nos o espetáculo, deve obedecer a determinado padrão, taxa de gordura, altura, peso. Que cabelos femininos devem ser lisos; que algumas cores de peles são mais aceitas; que olhos, melhor tê-los claros. Evidentemente, todos os acessórios – a mercadoria ou produto no seu sentido usual – continuam aí: marcas, produtos, gadjets, aparelhos, comidas, destinos turísticos. O diferente, me parece, é essa expansão da qualidade de produto para as próprias pessoas. E quando uma pessoa se torna, espontaneamente, produto, como convencê-la de que não é? E quando tudo é mercadoria, que escolha resta ao indivíduo, para ser aceito, a não ser tornar-se uma?
É claro que as consequências psicológicas de uma realidade como essa sobre a personalidade do indivíduo não são insignificantes, embora não sejam absolutamente claras. Debord aposta numa aniquilação da personalidade, o que me parece um tanto exagerado. Diz que a supressão da personalidade acompanha fatalmente as condições da existência submetida às normas espetaculares – cada vez mais afastada da faculdade de conhecer experiências autênticas e, por isso, de descobrir preferências individuais. Acho que a consequência mais plausível é uma certa dissociação da própria personalidade, que se vê em conflito entre o que ela deveria, em tese, almejar, e o que lhe dizem que deve almejar. Ao pressionar o indivíduo a sempre adotar as escolhas propostas pelo espetáculo, o resultado há de ser a infelicidade de muitos, que se encontram aprisionados em destinos que não enxergam como seus, exercendo atividades nas quais não encontram qualquer satisfação ou sentido.
Bem, talvez nem haja tantos assim. Porque é preciso admitir que muitos não se sentem divididos. Adotaram a realidade ilusória do espetáculo como constituição real de suas existências. Debord não parece considerar que a imersão completa na lógica do sistema espetacular pode representar certa libertação individual, certo sentido de unidade, ainda que esta se dê em comunhão com uma realidade forjada, ficcional. Talvez ele não tenha notado – ou o notou muito bem, mas não quis dizer – que a maioria das pessoas necessita de um sistema que lhes diga o que querer, eximindo-as do difícil e doloroso processo de escolha. Isso em qualquer época. Talvez tenha se recusado a ver que agir assim, em qualquer cenário ou momento histórico, é o que se considera, até num sentido etimológico, normal.
Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.
Achei impressionante a sua análise do texto. Meus parabéns. Sua crítica também, bem colocada ao final.