Coimbra, 15 de abril de 2019

No correr da vida, de tempos em tempos, pego-me a demorar em um lugar sem pernas que possam me fazer prosseguir. Estou presa nas teias do incompreensível e entendo, não sem esforço, que é preciso inventar uma nova língua porque a anterior já não mais lê o que se apresenta. É que são novas as terras. Cruzamos mais uma das fronteiras rumo ao fim do mundo como o conhecemos. Cuido de crivar mais um marco na minha linha de observação escatológica: uma bandeira com 80 tiros. Os oitenta nos levaram à beira do precipício do horror, mas foi o silêncio de quem podia fazer algo, o escárnio, o riso tosco que nos empurraram abismo abaixo. Riem do pobre-negro-favelado-indio-miserável-imigrante sem ver nele um irmão. Riem, orgulhosos de suas loucas teorias conspiratórias de dominação comunista; invertem polaridades e se regozijam por se considerarem possuidores de uma perspicácia que escapa aos pobres mortais.

O rei está nu, mas fica valendo a evidência: afinal muitos, dos ditos ‘sábios’, atestaram que viram a roupa real. Não só viram como deram detalhes – o ouro, os brocados, o veludo –, imagens resgatadas no âmago de suas próprias ilusões. Cobiça e ganância inflamadas. Mas quem vai dar ouvidos ao bobo da corte? Este pária que, por sua própria condição de excluído, é o único que aponta a nudez do rei? Se fôssemos acostumados a ler os clássicos seria mais fácil não cairmos em armadilhas prontas. A literatura mapeia o que é do homem. Shakespeare, há mais de 400 anos, deu a pista: houvesse o Rei Lear ouvido seu Bobo muita tragédia teria sido evitada. Mas não, foram as belas-vazias palavras dos empertigados é que tiveram vez.
No Brasil as evidências, as mesmas maculadas de torpes intenções que atestaram a vestimenta real, foram úteis para prender um homem contra o qual, até hoje, não se acharam provas. Mas era necessário… do contrário este homem ganharia a eleição e assim não poderiam se regalar de vida cinzenta, de agrotóxicos, de preconceito, de armas. A vida já foi menos rasa… Exibiram seus sarcasmos quando este homem perdeu os seus. Riram de suas lágrimas, tentaram contingenciar seu luto. Enquanto isso, são as contas compensatórias – pagando com vidas o progresso -, que fazem com que a Vale valha mais do que a natureza da qual se serve. Piada pronta de mau gosto. Mais: gargalham alto na cara da Cultura todos os dias. Pretendem que um governo seja maior que uma Nação. Não; nunca será. Em palestras valem-se de seus ternos e de uma oratória pseudo-divertida, costurando informações daqui e dali, para provarem por a + b, que estão certos. Para aqueles que não compram este lugar de certeza, tão confortável quanto arrogante, fica patente que tudo neste discurso trágico tem a função de submeter nossas vidas à lógica capitalista de manutenção das castas. E isto não é o mesmo que dizer: submeter-nos ao Mercado, porque este é vivo e, nesta condição, pode sim se adaptar aos ditames dos novos tempos. Quem não consegue ver? É tempo de renovar as linguagens, ler os sinais, dar olhos aos corações. E, vendo, sejamos todos corajosos. Façamos o nosso melhor.

Estamos mesmo no fundo do abismo, mas estamos ainda vivos. Enquanto eles, ao não aceitarem o erro como parte da vida, já não vivem. Então seus risos são amargos. Riem fora, do alto, de longe. Riem DO outro. Terão ainda a chance de descobrir que o verdadeiro Riso é de partilha? Terão a chance de conhecer o gozo do Rir COM o outro?


Lu Lessa Ventarola (Minas Gerais, Brasil) é uma artista plástica que fia palavras. Seu primeiro livro de poesias – Dos Vermelhos e Dos Cinzas -, com prefácio de Heloisa Buarque de Hollanda,  foi lançado pela Philos em 2018. Lu estará conosco na programação da Casa Philos na Flip na mesa “Por uma Poética Vermelha”.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades