Sou capaz de lembrar, com riqueza de detalhes, eventos irrelevantes que aconteceram há muitos anos, ao mesmo tempo em que esqueço as coisas mais óbvias. “Em que ano estamos?”, pergunto à minha esposa que me olha como se estivesse frente a um estranho ou um louco. Mas, se me pedirem, canto sem titubear o tema da campanha de Ulysses Guimarães nas eleições de 89. Tenho a capacidade, também, de ficar impressionado com fatos que costumam passar despercebidos pela maioria das pessoas. E alguns desses fatos costumam me vir à memória de forma recorrente, provocando sensações como se tivessem acontecido há instantes.
Tal qual uma noite, há cerca de quinze anos, quando voltava do trabalho e o ônibus parou no sinal vermelho. Desafortunadamente, logo ao lado de minha janela havia uma mulher caída no chão, morta. Havia sido atropelada. Era uma moça bonita, jovem, vestindo blusa branca e saia de algodão azul. Roupas humildes, simples. Era morena, tinha uma vasta cabeleira negra e crespa, pousada sobre uma poça de sangue que, não sei por qual razão, me lembrou o halo de uma santa. Um halo vermelho circundando sua bela cabeça. A bicicleta, com o guidão e roda dianteiros tortos, estava caída a seu lado. Um grupo de curiosos observava seu corpo.
Quanto tempo fiquei parado naquele semáforo? Talvez uns 30 segundos. Pouco tempo, mas o suficiente para compor em minha mente toda uma narrativa sobre a vida daquela moça. Tive certeza absoluta que seu nome era Rita. Por quê? Não sei dizer. Talvez tenha me ocorrido o nome devido a impressão do halo vermelho ao redor da cabeça, que instintivamente associei a Santa Rita de Cássia, minha santa de devoção. Por momentos que duraram uma eternidade, pensei naquela desconhecida que teve a vida bruscamente interrompida. Teria namorado? Provavelmente. Tão bonita… Imaginei a casa simples onde era aguardada. A preocupação dos pais. Rita está demorando, e essa cidade está tão violenta. “Onde está essa menina que não chega?
Estou começando a ficar preocupada…” diria sua mãe neste momento.
Teria irmãos. Muitos, com os quais dividia a pequena casa na periferia. Por isso, desde muito jovem, Rita trabalhava como doméstica para ajudar na renda familiar. Também por isso havia abandonado a escola, onde aprendera somente o básico. Ia e voltava do trabalho de bicicleta, para economizar. O pai era alcoólatra, embora fosse um bom homem. A mãe fora bonita como ela quando jovem. Hoje é uma mulher triste e envelhecida pela vida difícil e pelos planos não realizados. Rita tinha muitos sonhos. Casar com um rapaz honesto e trabalhador, ter filhos, uma casinha. Todos sonhos abortados.
Vieram-me à mente as palavras de Bukowski. “Às vezes, não há nenhum aviso. As coisas acontecem em segundos. Tudo muda. Você está vivo. Você está morto. E as coisas continuam.” O sinal abriu e o ônibus seguia seu caminho. Rita continuou lá, sem vida, estirada no asfalto; a cabeça pousada no halo de sangue. Continuou lá e na minha mente por alguns dias. Até que a imagem foi se desvanecendo, perdendo força ante os eventos cotidianos, até sumir por completo, voltando em cores vivas de tempos em tempos em meus devaneios. A vida continua.


Carlos Barth (São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 1979). É engenheiro de profissão e escreve nas horas de folga. Teve trabalhos publicados nas revistas Philos, Subjetiva e Subversa.

Publicado por:Philos

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