Havia uma mulher que tocava violino às cinco da manhã todos os dias na casa da frente. Esses eram aqueles em que eu permanecia no parapeito da janela, do outro lado da rua, observando-a. O tocar, por sua vez, era o simples ato de contato das digitais dela com a madeira de seu instrumento cansado. Era uma época turbulenta. O acidente havia acontecido há dois meses e eu continuava a sofrer muito de insônia. No acalento das cinco horas, permanecíamos somente eu, a vizinha e o silêncio.
Ela se prostrava estática por uma quantidade absurda de tempo, uma duração que nunca tive coragem de cronometrar. Sentava-se numa cadeira pequena de plástico, eu presumia, com as pernas semiabertas e o calcanhar esquerdo batendo no ritmo do compasso imaginário, inaudito. Violino no ombro esquerdo e pose de performance. Cortinas semiabertas, aveludadas. Os olhos, vazios, miravam constante um mesmo ponto perdido, dando em algum grão de cimento trazido da estrada para a rua. Sua expressão intacta, se muito, passava a mesma sensação dada pela falta de som das cinco da madrugada acompanhada pela música sublime da vizinha que não tocava uma nota sequer.
Antes de se sentar para tocar, tomava café. Olhava para o ralo da pia, lavava a louça da noite passada e refazia as pazes com a fé, cansada de passar a noite em claro compondo. Isso eu não via da janela, só sabia. A cozinha era quadrada e mediana. Caberia ali uma família, três filhos. Na parede oposta à geladeira, havia um pôster médio de papel repleto de caricaturas da música brasileira dos anos 70 a 80. O primeiro andar da casa possuía um estúdio musical velho, sempre vazio, cheio do cheiro de naftalina e do choro das paredes a clamar pelos graves que antes tanto as acariciaram e elas tanto repudiaram. Davam-se aulas de música e vivenciavam-se canções ali antes do acidente.
No segundo andar: a vizinha e o violino. O instrumento no ombro esquerdo e pose sempre de performance. Além disso, uma caneca meio preenchida de café preto na mesa afastada ao fundo, dia sim, dia não. Às vezes, eu podia jurar que via seus lábios tremerem, balbuciarem regras e acordes, como quem se prepara para executar uma partitura complexa. Certo dia, ela apareceu com um arco de madeira na mão. Posicionado no alto, foi colocado a menos de meio centímetro das cordas do violino e nunca mais saiu de lá. Os balbucios ritmados vieram junto e ali permaneceram. Seus pulsos tremiam, porém suas pálpebras eram de uma imobilidade íntegra. Quando olhei para baixo, naquele mesmo dia, meu dedo indicador jorrava sangue. Eu arrancara a própria pele com uma violência delicada, inóspita, involuntária e hostil. Percebi em mim, pela primeira vez, a ânsia de ver minha vizinha tocar. Ouvi-la já se apresentava enquanto um sonho utópico, mas a ver no ato, através da janela, tornava-se meu grande desejo inalcançável.
As sílabas mudas de sua boca surgiam com maior frequência, constantes, impecáveis. O café e a xícara, na mesa do fundo, figurantes, também. Eu dormia cada vez menos e me sentia cada vez mais cansado. Esquecia-me de ir deitar porque só conseguia me lembrar da vizinha, do violino e do silêncio. Quando eu não estava olhando para a vizinha, na madrugada, estava pensando nela e em tudo que ela representava. Tirava cochilos sentado, mal comia e não saía mais da janela, sobre o resguardo pulsante contra meus cotovelos persistentes. Eu somente sabia que, em determinado instante, quando o sol estava alto, a vizinha sumia, e em outro, no meio da noite, ainda, ela voltava para seu posto. E eu, ali, na sua eterna plateia.
Nunca vi ninguém circular na casa dela, pela janela. Da minha, mais nenhuma vivalma lembrava-se do endereço. Aquilo, entretanto, pouco me importava, pois eu me ocupava com minha corrida espacial particular. Vibrava com aquela ansiedade. Minhas mãos permaneciam em carne viva e a saudade ficava debaixo das unhas. Todo dia era o mesmo, e todo dia eu esperava que fosse diferente. Já devia fazer quase um ano do acidente. Eu não me lembrava direito. Não sabia mais ler calendários e o tempo não me aparecia mais de forma cronológica. Tudo apenas permanecia lógico, o tempo, eu, a vizinha e o silêncio. Uma vida inteira no ombro esquerdo e a pose de performance.
Numa manhã qualquer, a personificação da eternidade arranhou-me as retinas. A essas alturas, a vizinha havia acabado de se sentar. O violino, ainda frio, mal havia sido colocado em posição. Ao fundo do cômodo, surgiu uma sombra. Esfolei meus olhos ainda abertos, atentos. Hora mostrava-se um homem, hora não era nada mais que um monstro de massa amórfica, inumano. Escorava-se na parede gelada ao lado da porta como se dependesse daquilo para sua existência. Surgiu-me, como nunca antes, a necessidade falseada de gritar e de fazer-me visível para a vizinha. Gritei mil nomes, contei as horas, chamei-lhe de tudo o que eu considerava ser a razão do meu viver. Com meus braços estendidos e o coração na mão, na fraca tentativa de avisar-lhe do iminente perigo, posso jurar que a vi olhar-me por um mero microssegundo. Nesse mesmo fragmento de tempo oscilante, ela voltou a observar o mesmo ponto de sempre, como se todo meu exercício e vontade fossem nada mais do que uma paisagem morta. Essa foi a única vez que minha vizinha me viu.
Levantei-me do peito da janela com as tripas na boca. A sombra da vizinha se aproximava dela, ainda sentada com seu violino. Num ato rápido, o vulto agarrou o arco de madeira das mãos da mulher e o pressionou contra sua jugular, abraçando-a posicionado às suas costas. Meus pulmões explodiram pedras e minha pele reduziu-se a brasas quentes. O arco atravessou a garganta da vizinha e saiu pela boca, expelindo sangue para todos os lados. O horror deixou-me mudo. Olhei-a pela última vez. A sombra no ombro esquerdo e a morte em performance. Impecável obra-prima.
Arrombei o portão. Meliante, subi as escadas de uma casa que eu acabara de invadir, que não era e nunca fora minha. Chutei todas as portas do enorme segundo andar até encontrar o quarto onde estava a vizinha. Ao chegar lá, vi uma mulher pressionando seu peito contra o parapeito da janela. Onde eu sempre vira a mesa com a xícara de café preto, ficava, na verdade, uma escrivaninha velha, abarrotada de papéis amarelos contendo trabalhos inacabados, escritos à mão. Silêncio. O homem, o monstro, em lugar nenhum. Silêncio. Chamei pela vizinha e perguntei por seu bem-estar. Silêncio. Aproximei-me. A poucos centímetros de seu corpo, inclinei minha coluna para o lado e para frente, contorci meu pescoço, segui sua contemplação tentando entender para onde ela olhava com tanta atenção a ponto de estar alheia a tudo ao seu redor, aos meus prantos e à minha devoção. Não era para baixo, nem para nenhum ponto perdido na rua, como eu sempre a vira fazer, mas para uma linha reta na mesma altura de seu rosto.
Quando fixei meu olhar para o mesmo lugar que era sua fixação, vi minha janela, na casa da frente. A visão de meu quarto íntimo, intocável e impuro. Através das ventanas de vidro, fechadas, lá estava a vizinha. Ela olhava para um ponto perdido na rua, sentada em uma baixa cadeira de plástico. Silêncio. Encostei minha cabeça cansada no ombro cadavérico que se encontrava ao meu lado e respirei fundo. Havia uma mulher que tocava violino às cinco da manhã todos os dias na casa da frente. Violino no ombro esquerdo. Pose de performance. Fechei os olhos. Som. Ouvi a música da vizinha.


Rafael Muniz Sens (Florianópolis, 1995). Bacharel em Letras e mestrando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Publicado por:Philos

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