Por meio de manifestações, gestos, fragmentos e ações – que parecem reveladoras de profundas tensões sociais e existenciais – Elen Braga articula um pensamento sobre o corpo. Com seu trabalho reinventa sua biografia e a própria arte, deslocando e ampliando um campo simbólico em que as questões do corpo e do sujeito se inserem e são articuladas relações entre a vida privada e a vida sócio-política. Nesse sentido, os movimentos feministas foram paradigmáticos, ao insistirem no mote de que “o pessoal é político”.
Elen Braga retorna ao abismo do corpo, como fez Antonin Artaud que abrigou a pulsação corpórea na fissura, nas fendas, nos entremeios e não nas partes organizadas de um todo monolítico. É importante ressaltar que Artaud cunhou o termo “corpo sem órgãos”, espécie de anticonceito que simboliza um corpo fragmentado e reorganizado conforme critérios não absolutos e em constante transformação.
É a partir dessa cartografia própria que a obra de Elen Braga se constitui, a começar pelo interior do corpo, numa visceralidade que percorre trabalhos como “Tripas” (2010) ou “Músculos” (2011). Em contraposição ao modelo clássico de corpo, a artista introduz a fragmentação e as dobras frente à linha reta. Seu percurso segue pela via da dobra, tendo o corpo como um suporte sobre o qual o barroco e o feminino se inserem como alavanca metodológica.
Em “Tripas”, vestidos com pequenas flores – roupas costuradas pela mãe – são banhados e mergulhados em parafina, criando um interior em que a marca do corpo se escreve. Roland Barthes diz sobre a afinidade etimológica entre texto e tecido: “vejo que o tecido só pode ser o que envolve o corpo, as superfícies e os interiores, os órgãos e suas cavidades”. Assim, as próprias bordas do corpo são demarcações construídas que delimitam as relações entre o permeável e o impermeável, o dentro e o fora, do que se pode ultrapassar ou não, entre o eu e o outro. Desta forma, o corpo vai se desenhando na pesquisa da artista. As fronteiras do corpo não são puramente físicas e individuais: a pele é também um tecido social que nos conecta ao outro.
Na obra “Músculos”, em látex e acrílica vermelha, as roupas são o suporte para a encenação da visceralidade do corpo: do lugar de memória e vivências de paradoxos, a carne, que não se contém em si, precisa da explosão que a projeta para fora, do fundo de uma tela. Torna-se figura arquitetônica, escultórica, substância palpável em toda a sua força violenta. Vísceras que não são mais alegorias de um aspecto carnal do corpo, vísceras que chamam para o toque, mesmo perante o horror do estranhamento. Revira-se o sentido da pintura à instalação, num diálogo direto com Severo Sarduy, escritor barroco cubano que defende que a produção artística ocidental vem subvertendo a ideia de suporte, qual seja a transformação da imagem-pintura em corpo-suporte.
No trabalho de Elen Braga, o verbo se faz carne e a carne se faz corpo inscrito. Essa descolonização do olhar e da escuta se adensa em “The Mermaid’s Song” (2012), em que o interior do corpo se projeta em uma instalação com nome enigmático: “Canto da Sereia”. São dez caixinhas de som fixadas na parede e, em cada uma delas, um sussurro conta uma história de assassinato verídica acontecida no Brasil. O que parecia, ao longe, sons de passarinhos, revela-se como algo brutal. Essa voz reveladora da ambiguidade da subjetividade recoloca o corpo no centro das discussões sobre o trabalho artístico com a linguagem: a consideração das percepções sensoriais, portanto, de um corpo vivo, atravessado também por potências abissais e fantasmáticas.
Na performance “Cabo de força”, realizada em 2012 no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo, o imprevisto acontece: algo se quebra quando a artista rompe o ligamento cruzado do joelho. Outro corpo se coloca e o mundo se configura. Na busca e investigação do gesto e da força, a artista encontra o livro “Halterofilismo pelo método Hércules” e daí testa ao limite a tensão do corpo e suas modulações, numa série de trabalhos distintos que se ancoram em narrativas de transformação do corpo de forma mítica. Assim como em “Hércules e os doze trabalhos”, a artista empreende uma pesquisa sobre corpo, performance e experimentação, numa verdadeira jornada de força. Obras como “Os sapatos de ferro” (2013), baseadas no livro, desdobram-se em escultura e performance, de tal forma que o próprio objeto utilizado na ação ganha estatuto de obra. Na performance “Tração 200 quilos” (2014), a vestimenta usada para a ação é a marca de algo que reveste esse novo corpo. Alguns pesos ficam pelo caminho como índices daquilo que também se perde no corpo para reconfigurá-lo, como no processo de decomposição da figura humana empreendido pelos artistas das chamadas vanguardas históricas, ligado à busca pela sobrevivência do ser humano em meio à aniquilação geral. É uma forma de resistência à violência e insanidade do massacre, uma atitude por vezes utópica de encarar a situação e projetar um caminho que ofereça alguma perspectiva ao vazio do presente.
Na esteira de enfrentamento do real e na aproximação vigorosa e tensa com a matéria, Elen Braga perfaz as tarefas de força e fragilidade, constrói um novo corpo sem recuar dos aspectos mais obscuros que constituem a subjetividade humana. É o que ocorre na série “A rocha” (2013), partes 1 e 2, em que concentra-se frente ao incomensurável do mar, na Praia da Rocha em Algarve, Portugal, para bordejar a morte e a solidão. No gesto de buscar a força na natureza, subjaz um confronto com a vulnerabilidade e a pulsação do pensamento poético que, a um só tempo, produz e é produzido pelo gesto artístico. Essa dupla genealogia coloca em abalo a ideia de que o conceito precederia o fazer, dando a ver que a obra de arte é menos a materialização de uma elaboração conceitual prévia e mais um campo onde questões são colocadas em estado de tensionamento e transformação.
Em “A pintura encarnada”, Georges Didi-Huberman nos adverte que esse pensamento produzido pela obra convida a uma investigação experimental, indica um tatear. Elen Braga descortina um corpo-carne entremeado ao corpo-paisagem, e aquilo que é acionado em suas performances e gestos perturba a dicotomia sujeito/objeto, assim como as noções de sentido, representação e razão, como na performance “O vento” (2014) em Ushuaia, cidade da Argentina, no arquipélago da Terra do Fogo, extremo sul da América do Sul, lugar conhecido como “fim do mundo”. Na colina íngreme com ventos muito fortes, a artista estabelece um jogo de tensão que coloca seu movimento a contrapelo do vento, numa atitude quixotesca em que o pensamento poético perfaz uma regulação entre o excesso do corpo e o excesso da paisagem, uma regulação sempre trêmula e incerta, mas que escreve uma condição de enfrentamento. Uma escrita como a formulada por Maurice Blanchot no livro “O Espaço Literário”: talvez a arte exija que se brinque com a morte. Estar nessa proximidade, tangenciar esses domínios, perseguir o declínio do sol, a força dos ventos, produz fendas que permitem que a dimensão do feminino compareça destotalizando a existência e convocando à invenção do mundo.
Na cartografia que Elen Braga reconstrói encontra-se um corpo que se desloca ao mundo, que vai à borda do planeta ou ao Vale da Morte numa travessia arriscada como a de “Tão quente que era pouco mais que a morte” (2015), trabalho em que a artista carrega nas costas placas gigantes e pesadas com textos que condensam sua vergonha, numa espécie de ritual que evoca a escrita de Maurice Bataille, relacionando morte, sacrifício e libertação – elementos diretamente ligados a experiências profanas do corpo e que colocam em cena a relação visceral com a própria carne, com a presença de cada um no mundo.
Elen Braga sustenta a ação no tremor que antecede o desmoronamento. Ela oferta seu corpo como palco de uma metamorfose e é o que suscita “Leave me alone” (2014), performance que embaralha as relações entre vítima e algoz, estabelecendo um jogo entre dois corpos que colocam em cena a noção lacaniana de gozo: uma modalidade que se encontra no ir e vir do prazer e da dor que se apresentam como estruturais na relação com o outro. Baseado na ideia de que o eu se constrói primeiramente a partir do outro, em especial a partir da imagem que lhe é devolvida pelo semelhante, Jacques Lacan marca o desconhecimento e a alienação como constitutivos do eu. Na relação com o outro, há sempre uma carga que incide sobre o corpo. Isto é revelado em “Peso” (2014), performance que se aproxima desse suplício e também faz parte da série baseada nos 12 trabalhos de Hércules: a artista carrega outro corpo, se arrastando pelo chão. Entre um ser e o outro há um abismo, existe uma descontinuidade e é isso que a ação revela. Somente podemos sentir em comum a vertigem e o peso desse abismo, e tantas vezes fazemos uma travessia com o excesso do corpo do outro em nós.

A série “Um novo céu, uma nova terra” (2019) traz a busca de referências do imaginário do paraíso celestial para subvertê-las: a ideia de paraíso é reconstruída a partir da profanação, promovendo uma torção crítica que convoca uma comunidade que possa inventar sua própria ficção – sua maldição e sua beleza. Para tanto, a artista se vale de vários recursos prontos de sedução e encenação que a religião oferece – fumaça, efeitos de luz, música – para tensionar os sentidos.
Seu próprio corpo encarna essa tarefa de subversão e fragmentação das certezas, também na série “Elen ou Hubris” (2020), um tapete de 120 metros com sua imagem segurando um peso sobre a cabeça, no Arco do Triunfo em Bruxelas. Ao inserir seu autorretrato num lugar monumental, a artista articula questões importantes que vão do mais singular ao campo do comum. A palavra hubris deriva do grego e significa orgulho exagerado ou arrogância, e o aspecto monumental da obra tensiona aquilo que está em jogo na lógica do poder. Ao tomar seu próprio corpo como monumento, a artista sustenta um gesto que cria ruídos na paisagem. Também em tapeçaria ela promove a fragmentação de seu corpo, criando recortes – como “Curva da cintura/curva do quadril” e “Olho, pé, boca, braço” – que esgarçam uma ideia de completude narcísica e de arrogância, apontando de forma exata para outras camadas na construção da imagem.
Em “Profecias” (2021) a gramática das imagens apocalípticas é adensada junto à relação com o mundo. Elen Braga forja uma representação da tragédia e da ferida incurável, em um movimento como o discernido por Maurice Bataille em “A experiência interior”: abrindo-se ao não-saber e ao impossível, ao abjeto e ao sublime, ao céu e à terra. Elen tenta imaginar o futuro criando sua própria profecia.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud fixa o ponto fundamental de nascimento da sociedade e também aponta um fim de mundo, no sentido de que este nascimento mítico-estrutural – que invocaria uma narrativa que condensa as leis básicas da subjetivação do homem com relação ao social – estaria inevitavelmente marcado por mal-estar e rupturas. Elen Braga persegue essa trilha: sua obra é uma cosmogonia, uma aparição de mundo e também desaparição, uma escatologia, o fim de um ciclo. Trata-se de uma revelação que vai acontecendo de forma a conjugar discursos proféticos do saber comum com frases extraídas de oráculos diversos em várias línguas encenando uma Babel. Entre palavras e imagens bordadas, o apocalipse acontece como construção simbólica, como uma invenção que sabe jogar com as ruínas.
A ficção é erigida a partir de um imaginário que inclui elementos do tarô, aspectos da astrologia e outras artes divinatórias: um sol negro, um eclipse, mapas do mundo reconfigurados, uma cartografia que inclui utopias, acontecimentos, criação de outras perspectivas, deformações e invenções. As ruínas são alegorias de um mundo prestes a se desfazer como uma escada que se liquefaz ou uma árvore com frutos caídos. A maneira como a dimensão religiosa é recolocada mostra que é possível refundar a relação com o mundo abrigando a dispersão que nos constitui como sujeitos. Tudo na grande tapeçaria explode, dilata-se, se dilui. A matéria heteróclita das coisas é revirada por dentro.
Profetizar um fim embaralha as cartas da arte e da vida e, dessa maneira, Elen Braga reinventa sua própria trajetória: de um percurso prévio com o discurso religioso ela extrai o cristal de seu trabalho. A artista busca em Clarence Larkin, um pastor batista americano, o solo para a pesquisa: Larkin também ilustrou à sua maneira o apocalipse e criou esquemas e diagramas de grande força poética e plástica. Elen dá um passo a mais e reencontra um fim à deriva de onde a civilização o abandonou. Ela assina seu nome no desfiladeiro do mundo e, nesse gesto, tão poético quanto político, inscreve seu testemunho no turvo da existência e nos lembra de que pode-se ver do avesso aquilo que irrompe sob formas discordantes: ruína e salvação, escândalo e sutileza, um assombro fugaz e um poema a inventar um fim como abertura perpétua para que outros recomeços possam vicejar.
Bianca Dias é psicanalista, crítica de arte, autora do livro “Névoa e assobio”. Fez História da Arte na FAAP e é mestre em Estudos Contemporâneos das artes pela Universidade Federal Fluminense.