Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C.

É do meu retiro entre pinheiros que te saúdo, Lício caro, nesta hora crepuscular em que resta algo de luz violeta no céu, suficiente ainda para escrever-te. Ouço zunidos agudos de morcegos e consigo discernir na penumbra os pequenos vultos negros a ziguezaguear em trajetórias nervosas. Rompem agora as rãs no charco a coaxar. Ao longe, gritos roucos de corvos completam o coro de sons ao meu redor. Além dos servos, são essas as criaturas animadas a fazerem-me companhia na solidão em que me julgava a salvo das intrigas da cidade. Bem conheço tua preferência pela turbulenta vida urbana, e suponho que tais descrições bucólicas te aborreçam. Sirvam, pois, de contraste às palavras delirantes de Licurgo, o eterno e frustrado candidato à glória poética, e cuja visita na tarde de hoje veio interromper a placidez do meu isolamento.

Provinha ele de Roma rumo a Péssaro, a cidade moribunda onde nasceu – Catullus dixit – e aqui irrompeu à hora da sesta, sem se anunciar. Na metrópole tivera em mãos uma cópia da última epístola de Ovídio, acabada de chegar das paragens bárbaras do Ponto, e inquieto pelos boatos que ouvira de uma possível mudança no destino do exilado, a quem odeia, vinha desabafar e deitar nos meus ouvidos o fel peçonhento de seus pensamentos.

Tão logo chegam a Roma as cartas de Ovídio, bem o sabes, um pequeno grupo de fiéis providencia cópias dessas lamentações em versos pungentes, que logo circulam em segredo entre amigos e simpatizantes do poeta que amamos. Uma delas, por traição ou descuido, caíra nas mãos ávidas de Licurgo. Não parecia ele ébrio de vinho, e sim de algum estado de indignação colérica que o fazia andar em passadas agitadas de um lado a outro, pronunciando frases pomposas que por vezes me pareciam dirigidas a algum cenáculo invisível. Tentarei reproduzi-las a partir dos fragmentos que retive na memória, para que me ajudes a refletir sobre o que ouvi.

Frankenstein, um projeto da Imagerie (PT).

Eis que acabo de receber outra visita inesperada: um minúsculo e gracioso camaleão, de cabeça e tórax cravejados de pontos multicoloridos, acaba de cruzar em diagonal a parede clara e veio postar-se diante de minha mesa, hirto como uma sentinela em posição de sentido. Trouxe-me à memória o menino mal-criado que ousou escarnecer da grande deusa Ceres, imediatamente transformado num semelhante animálculo, como canta o nosso pobre exilado em seu livro grandioso sobre as formas mudadas. É agora ele o metamorfoseado, rico e glorioso outrora, o mais aplaudido e invejado na urbe, mudado hoje num frágil suplicante, expulso da pátria para um lugar miserável, privado da mulher e dos amigos, habitando entre bárbaros hostis, e –castigo supremo – divorciado da própria língua latina que engrandeceu.

A um brusco movimento meu, o pequenino réptil fugiu amedrontado e escondeu-se numa fresta escura. Nosso poeta, por sua vez, não se resigna a esconder-se mudo no sombrio lugar de seu castigo, e continua a compor os versos lancinantes e sublimes que envia aos amigos no intuito de fazê-los interceder junto ao Príncipe. Esperança cruel e sempre frustrada de um perdão que não chega.

Meu servo trouxe-me uma lamparina e posso começar a partilhar contigo o diálogo desta tarde, durante a qual muitas vezes hesitei se devia ou não expulsar o hóspede repulsivo. Licurgo encarna o verso do nosso amado poeta: «Vi um homem que se ria dos naufrágios.» Decidi, porém, deixá-lo falar. Alguma informação poderia revelar-se útil a quem, como eu, está pronto a tudo fazer para salvar o vate. Trazia ele consigo algumas anotações, chegou-se a mim com um semblante ameaçador e pôs-se a ler:

L.:  «Não defendas a minha causa: não se menciona uma causa débil. Que tuas palavras soem apenas como preces cheias de angústia. A seguir, remove a barreira das lágrimas, atira-te ao chão, estende os braços na direção daqueles pés imortais. Então não peças nada, senão que eu possa escapar ao cruel inimigo que habita estas paragens. Meu destino já é inimigo suficiente. Tua voz deverá tremer, deixar entrever que estás aterrorizada diante da sua majestade. Não fará mal que teu discurso seja interrompido por soluços. As lágrimas por vezes carregam o peso de palavras».

É extraordinário. Como se pode ser tão ingênuo?  O homem usa os seus conhecimentos jurídicos para ensinar à mulher como comover Lívia, a consorte do príncipe e a sua maior inimiga!

Eu: É natural que a esposa do poeta tente influenciar a mulher do Augusto, se a ela tiver acesso, como é o caso. Lívia a maior inimiga do poeta? Divagas? De que licor te embebedaste?

L.: Por certo podias mostrar-te mais hospitaleiro e dar-me de beber. [Mandei que lhe trouxessem vinho]. Sim, é dela que falo, a matrona de vida recatada, a esposa casta que se veste com modéstia exemplar e cose ela própria as roupas do seu marido. A sublime matrona não suporta que se mencione em sua presença sequer os títulos dos livros do teu amigo exilado, esses que fazem as delícias de pessoas como tu, amantes de poesia obscena. Foi ela a trabalhar na mente do consorte a necessidade de proteger a moral das matronas romanas mediante a lei da proibição do adultério. A mesma que se provou tão oportuna quando Augusto expulsou de Roma a única filha e despachou-a ao mortífero exílio onde vegeta. Com a proibição explícita de que na ilha diminuta de Panataria houvesse presença de homens ou de vinho!  Sabia ele bem o porquê!  Ao Senado, aonde só comparece  com uma armadura de bronze a proteger-lhe secretamente o tórax sob a toga – aprendeu a lição de seu divino pai! – foi em pessoa denunciar em longo discurso, e com riqueza de pormenores, a vida dissoluta de Júlia, seus ingentes apetites lúbricos, a numerosa lista de seus amantes, cujos nomes pronunciou um a um. E também o constante abuso de vinho daquela outrora celebrada em Roma como nova Afrodite.  Descreveu suas orgias noturnas celebradas nos lugares mais sagrados de Roma, quando convocava seus parceiros libidinosos para encontros junto à estátua do sátiro Mársias, no Foro, ao que dizem para aludir às antigas liberdades republicanas esmagadas pelo pai! É evidente que tais costumes necessitam ser perseguidos e castigados severamente, sob pena de ruína insanável do arcabouço moral do Império ! E dez anos depois, é Júlia Menor, a filha impura, que segue as pegadas da mãe e recebe o mesmo castigo! Mas há algo mais que não sei se te devo revelar.

Eu: Não me custa aceitar que Lívia seja de fato a grande força escura que move por ambição a vontade do Principe. Mas não vês que o casal ostenta a sobriedade, como outros ostentam joias?  Dono de fortuna gigantesca, cai bem ao supremo chefe aparentar gostos simples, vida doméstica modesta como a de qualquer cidadão. Quando se sabe que visita com a própria carruagem imperial as mulheres de senadores ilustres…  Sempre me pareceste um crédulo incurável, e agora percebo que és também um pobre de espírito. Aceitas sem a menor crítica os embustes do monarca, destinados a manipular a opinião pública. Tratava-se, no caso da primeira Júlia, tão-somente de fazer voltar Tibério a Roma, para satisfazer a vontade de Lívia, que exigia fosse ele, seu filho do primeiro casamento, o herdeiro único do Império. Amargado pelo casamento infeliz com Júlia Maior, a que Augusto o forçou, e desprezado e enganado por ela, Tibério preferiu exilar-se em Rodes e abandonar a vida política, depois de seus importantes triunfos em campanhas militares. Foi ele, Tibério, o filho de Lívia, a exigir o afastamento da mulher como condição da sua volta a Roma. Embora, para enganar a opinião pública, tenha escrito ao Príncipe epístolas hipócritas pedindo o seu perdão.

Frankenstein, um projeto da Imagerie (PT).

Mas porque pareces tão cheio de furor contra essas desgraçadas  mãe e filha ? Foram perseguidas não por seus inofensivos desejos carnais, tão desculpáveis, e sim por baixas ambições dinásticas. O que têm elas a ver, volto a interrogar, com o castigo fulminante ao poeta, cujos reais motivos para o exílio foram tão meticulosamente escondidos?

L.: Pretendes defender o pundonor dessa dupla de adúlteras notórias? Tal mãe, tal filha! Não conheces a réplica de Júlia Maior, tida por espirituosa pelo próprio Augusto?  Alguém lhe perguntara como fazia para que seus filhos com Agripa se parecessem todos ao pai, apesar dos amantes sucessivos que mantinha?  Ora – respondeu – só aceito novo passageiro quando o barco já está lotado!

Quando num império se desfazem os vínculos dos cidadãos com um sistema religioso coerente, os déspotas devem esforçar-se por fundar uma nova moral. Quem, entre nós, leva os deuses a sério? Augusto quer tomar-lhes o lugar antes que novos deuses bárbaros corrompam os fundamentos do Império. E faz bem.

Eu: Mas por que as leviandades privadas das matronas aristocráticas passaram a ser castigadas como crimes de lesa-pátria? O próprio Augusto não levava a sério as aventuras da filha única, a bela Júlia a quem tanto amou, tão culta como voluptuosa, incapaz de sentimentos de vingança, apreciada pelo povo, dona de língua aguda e irônica como a do próprio pai. Antes da mal explicada e severíssima punição, orgulhava-se o próprio Augusto de uma de suas tiradas cômicas: «Tenho duas filhas dissolutas a aturar: o Império Romano e Júlia.» Surpreende-me a tua insistência nesses falsos argumentos moralizantes.  E quanto ao nosso poeta, acreditas mesmo que seu livro subtil sobre a arte bélica do amor, joia poética que viverá muitos séculos, publicado na sua primeira juventude, mereça tal severidade? Ovídio, dono da linguagem mais potente e versátil do nosso tempo, queixa-se agora de ter desaprendido o latim, já que se viu obrigado a falar as línguas de Getas e Sármatas. O longo tempo cobrirá de opróbrio a cabeça de quem tudo faz para parecer o príncipe exemplar, mas que se aferra vilmente ao poder, assassina os inimigos, trai os mais devotados defensores, como Cícero (lembras do seu cadáver profanado e arrastado pelas ruas de Roma, as mãos e a cabeça amputadas exibidas no rostra sagrado do Forum?), e articula a sangue frio as mais odiosas perseguições.

L: Ingênuo és tu, ou então finges ignorar a consabida cumplicidade do teu amigo com as imoralidades tanto de uma como da outra Júlia. De quem foi fiel amigo, alguns dizem amante de ambas, e certamente facilitador de aventuras ilícitas.  Na sua longa autodefesa em verso, diz-se testemunha involuntária de algo que não deveria ter visto. Apenas esse o seu erro, segundo afirma uma e outra vez, e não um crime. Um novo Ácteon, que surpreendeu sem culpa a nudez de Diana, logo mudado em cervo – para não poder contar o que vira – e despedaçado por seus próprios mastins! Consta do livro que todos louvam em público e muitos desprezam em particular.  Pois bem: testemunha involuntária de quê? Em que circunstâncias? E por que ele não o revela, já que se julga injustiçado?

Eu: Se tudo o que dizes tiver sentido, para não desmascarar os verdadeiros motivos do Príncipe, caso revelasse a verdade. Poria sua vida em risco.

L.: Assim é. Augusto exigiu um sigilo inviolável às razões do castigo. E o acusou de imoralidade pelo livro publicado uma década antes para desviar a atenção do público da verdadeira causa do exílio.  Por isso mesmo o poeta, nas suas perorações lamentosas, só faz ao seu erro alusões indiretas, que acicatam a curiosidade de todos até ao extremo, mas não deixa escapar nenhuma palavra a mais. Como é hábil em fazer perdurar o segredo! Enquanto isso, aguarda em vão que a mulher e os amigos em Roma se movam para demover o Príncipe.

Eu: Dirás finalmente em que consistem então as verdadeiras razões do castigo?

L.: Por onde andaste, que ignoras o que todos murmuram? De que forma viveu Nasone durante os dez anos de celibato, antes de casar-se pela terceira vez, festejado e cortejado em Roma como filho preferido, a ler publicamente seus versos obscenos em que se jactava de inumeráveis conquistas, para a parva e beata admiração pública?  Chegou a pedir aos deuses morrer durante o coito, enfraquecido por Vênus, em vez de destruído por um raio de Júpiter. Para que em suas exéquias alguém dissesse, em lágrimas: tal morte convém a semelhante vida.

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[Encheu ele mesmo sua taça de vinho e continuou a discursar.]

Sabe, pois, que Júlia Maior foi uma de suas libidinosas companheiras de jogos, de quem a seguir se fez cúmplice e facilitador de encontros.  Onde se davam os seus encontros com a legião de amantes? Ó santa inocência, na villa que o imperecível cantor das formas mudadas mantinha perto de Roma para os seus retiros poéticos! Tu que segues a regra horaciana de que nada te espante, não faças tal cara de surpresa: para melhor hospedar a amiga insaciável, o poeta fez instalar na villa, cercada por um bosque de pinheiros, um aposento forrado de espelhos, guarnecido de posto secreto de observação para algum seleto apreciador. Depois que a mãe foi castigada e mandada passar fome no exílio, a gentileza do bom amigo estendeu-se à filha, como era natural. Nessa armadilha caiu o próprio armadilhador. Advirto, porém, que o que lá viu e o perdeu não se passava na cama.

Eu: O que dizes?! Alucinas, ou já te subiu o vinho à mente?

L: A hospitalidade oferecida pelo poeta à jovem matrona mudara de caráter. Revoltados com a tirania do Príncipe, uns quantos romanos de alta estirpe, senadores e cavaleiros, mais tarde acusados de adultério com Júlia Menor e passados pela espada, começaram a conspirar no abrigo bucólico do poeta do amor lascivo, que de nada suspeitava, inocente criatura! Até que, movido por um desejo perverso de indiscrição erótica, e avisado por um servo dos encontros de Júlia Menor com um número extraordinário de namorados, o poeta anfitrião decidiu gozar a sua parte de luxúria. Quis ver o que julgava ser um espetáculo de múltiplas, variadas ou sucessivas fornicações.  Despreocupado ou ingênuo, não previu que as supostas bacanais estavam sob a estreita observação dos guardas do Príncipe. O que se passava naquelas noites, denunciaram os esbirros, era algo distinto. Em vez das artes de Vênus, operava-se no domínio de Marte.  Aqueles homens preparavam um golpe contra o poder cada vez mais asfixiante de Augusto.

Eu:  És tu que o dizes. E como o provas?

[Servi-lhe mais vinho; queria ver quão longe iriam as suas alucinadas divagações.]

L: Os guardas prenderam os rebeldes no ato mesmo da conjura, ao lado de Júlia Menor, que lhes servia de álibi. O poeta foi apanhado em flagrante, escondido no seu infrutífero posto de observação. O resto é já história.

Eu: Recuso-me a aceitar tão ignóbil versão. Tu não me mereces crédito. És movido pela inveja, poeta obscuro e ressentido.  E por que teria sido condenado Ovídio em perfeito sigilo, sem processo, encaminhado e julgado à vista de todos no Senado? E porque seu banimento incluiu a menção à Ars amatoria, publicada dez anos antes?

L: Um príncipe covarde abomina a própria fraqueza. Uma conspiração, mesmo abortada, evidencia a sua vulnerabilidade. Pode incitar novos conspiradores. A causa contra Ovídio era rasteira e vergonhosa. Não convinha ao decoro imperial divulgá-la. Quanto ao resto: sabe que o livro que de fato provocou a ira de Augusto foram as Metamorfoses.

Eu: O Pontifex maximus que anuncia não ter tempo para coisa alguma além da administração do Império – convoca todas as manhãs dois ou três barbeiros para atendê-lo em simultâneo, afim de não perder tempo em cuidados cosméticos – terá lido a obra-prima do meu dileto Ovídio?

L.: Alguém, de quem não te direi o nome, mas que passa por amigo do poeta, advertiu Augusto para o retrato sarcástico dos deuses traçado por Ovídio ao longo dos quinze livros das Metamorfoses. Surgem tão lascivos, soberbos, vingativos e vaidosos como os próprios mortais.  As rasteiras lisonjas a Augusto no fecho do livro não disfarçam o desprezo de Nasone à autoridade que sabiamente nos governa e não iludiram o Príncipe. Irritado terá ficado – também ele ambicionou ser poeta – sobretudo com o auto-louvor no qual o vate se despede da obra. Aí tens… Digere agora o que ouviste e vê se te convém divulgar tua amizade ao exilado de Tomis. Agora vou partir. Pede ao teu servo que encilhe meu cavalo.

Pensei em adverti-lo para os perigos da estrada àquela hora. Mas deixei-o partir. Não merecia meu cuidado. Permaneci absorto um longo tempo, refletindo no que dissera aquele ser abjecto. Ao meu redor, as cores do mundo pareceram-me tristemente alteradas. À guisa de antídoto, busquei o último volume das Metamorfoses e li os seus versos finais. E com eles me despeço também eu de ti:

Concluí o trabalho. Nem a cólera de Júpiter, nem o fogo,
nem o ferro ou o tempo voraz saberão destrui-lo.
Assim queira, o dia apenas dominará
meu corpo! Que termine o meu tempo incerto de viver:
imortal na minha melhor parte, por sobre os astros altos
me elevarão, indelével será o meu nome;
por onde quer que se estenda, sobre as terras
submetidas, a potência romana,
a boca do povo me lerá; pelos séculos fora seguirei conhecido
e, se há verdade nos oráculos poéticos, viverei. 

Adeus,
Calvo

Frankenstein, um projeto da Imagerie (PT).

Gilda Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro, 1938), pianista e escritora. Publicou o romance Na sombra do herói (Topbooks 2010) e a fábula para a juventude O caso do amendoim roubado (2017 Jaguatirica). Reside em Lisboa. As fotografias de acompanham o texto são de autoria da Magda Fernandes e José Domingos, da Imagerie, Casa de Imagens, de Portugal.


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Publicado por:Philos

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