Flávio Morgado nasceu no Rio de Janeiro em 1989, é poeta, professor, crítico de arte e editor. Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em História da Arte pela PUC-Rio, atuando como professor dos ensinos Fundamental e Médio, e em oficinas de arte e literatura. Escreveu “um caderno de capa verde” (2012), “uma nesga de sol a mais” (2016) e “preciso” (2019), todos publicados pela editora 7Letras. Em 2020, junto com amigos, funda a revista A Palavra Solta, onde além de editor, também assina a coluna de política. No catálogo de verão da Philos, Flávio lançará o livro de poemas “Quero te dar o corpo total do dia”, com obras de Marcela Cantuária.
No neolatina especial, apresentamos três poemas inéditos do artista acompanhados de uma seleção de telas de Marcela Cantuária feitas especialmente para o projeto e em exposição no projeto IMS Convida, em parceria com o Instituto Moreira Salles:
Pier Paolo nos acuda
onde é preciso ser desgraçado e forte,
irmão dos cães. — Pasolini
nenhum filho sobre os meus joelhos.
na tecla, o computador cancela
exatamente o grito
e o melhor gravurista da cidade
dirige um uber em 2020.
as oligarquias da morte
contaminam o gozo,
não cancelam a sobra
os excessos da exploração;
a sobrevivência reinventa a ética,
meu corpo é mais barato no frio.
é frágil o metal das quentinhas,
na mão pulsa pressa e resignação:
fúria com carne moída.
os melhores dentes
no sorriso dos vendilhões
– a penhora da beleza
é sempre por nada.
Pier Paolo escalava
homens feios no
papel do poder
(o recalcado media o prazer)
e ao seu modo de fazer cena:
“realismo italiano”.
o mundo é mesmo esse.
Silvio Berlusconi resiste!
por debaixo dos planos,
meu corpo se distrai e
se destroça em pretensões
e pernas de outras classes.
a dignidade é um gesto turvo,
promissórias de um coração aquecido:
venho pagando no crédito
(este novo termo da esperança).
veja você onde chegam os oligopólios
a paixão das segundas-feiras:
dosar as drogas, evitar os
noticiários e as videochamadas
enquanto o tempo acende um pavio
de cólera
nas chuvas e
nas classes;
sei que existe um tremor
na mão aflita, e ela
jamais psicografa, se não
essa urgência dos que farejam
as naftalinas da culpa e o neon-frio
que não amenizam os dias sinceros
com seu cheiro de dispêndio queimado.
(a mão treme entre Jack London & A CLT)
os exilados do Parque União
dão templo ao viaduto e puxam
o carnaval & a fila-do-crack
tem mais crédulos que a fila-do-pão:
retrato da travessia.
testemunho do nosso fogo perdido.
é entre bichos que a flor se justifica;
qual dose tem teu agora?
que filtro te ensurdece?
qual begônia te distrai a fronteira?
(na praça do comércio
de teus afetos,
qual concessão
à boca fascista?)
qual languidez de amor
dá unidade ao matrimônio
após a Tok&Stok?
qual boleto mais pesa na ruína?
sei contar os corpos.
quem sobrevive pouco se apaixona
(veja você onde chegam os oligopólios!)
o amor desce
na alta do dólar.
e você, baby,
finalmente soube da margarina?

brasília
a Oscar Niemeyer, Nicolas Behr e Thiago Vieira
brasília é o reino de Niemeyer:
esse alexandre em conquista
do espaço
rei-poeta
entre as pedras
moldou o fluxo
e a cidade não construiu,
mas a convidou
em nós.
querem a república?
ocupem essas grandes avenidas!
faço uma cidade ao povo
(no gesto solitário
de um homem, a lápis,
convocando a multidão)
a horizontalidade
a curva
anárquica comunga
a marcha
do concreto ao delírio;
da fundação à fronteira
o espaço é um hábito.
(que nos permite, o rei-escultor:
tudo se pode num reino livre)
então se hoje
brasília atende por W’s
porque teme o poder da memória;
se cercaram seu plano
à censura da tímida Sodoma
de seus funcionários públicos;
se queimam índios
os meninos da Mackenzie
ou preferem loiras
os deputados do PSC
nada disso interrompe o poema
porque os melhores versos
são como soluços na hora errada.
então ao redor do Paranoá
e sua enseada artificial
haverá especulação
imobiliária
e poética:
porque nesses silêncios,
nessa vacuidade
a margem canta.
brasília também é côncava aos candangos,
aos pernambucanos, aos cearenses, aos negros do Cruzeiro,
aos perdidos do Gama, aos crentes do Vale, umbandistas do Guará e
todos os sonhos que acordam em um caminho vil.
se o Sudoeste bane a brisa
às custas de empreiteiras;
se águas claras mata a sede
da geografia do isolamento
e os satélites são como guetos
o anfitrião-poeta
também não se espanta,
essa contradição enfim o regozija:
a cidade propriamente
é esta (
que está viva
)

Flávio Morgado e Marcela Cantuária se unem no próximo livro da Philos, Quero te dar o corpo total do dia, anunciado pelo IMS Convida:
Na série Quero te dar o corpo total do dia, Marcela Cantuária traz 13 telas em dimensões muito menores do que estamos acostumados a ver em sua pesquisa. Se nos murais é exercida sua vocação pública, a verborragia de suas remissões, nesta série, inspirada em 13 poemas que dão título à série e compõem um livro em parceria com o poeta Flávio Morgado, Marcela Cantuária se vê diante do desafio da concisão. Trabalhos anteriores já antecipavam o exercício poético que surge como um novo desdobramento de sua potência – como quem sempre condensasse um grito.
Marcela Cantuária (1991) é pintora, formada pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Em 2020, foi convidada a participar da residência FountainHead, em Miami, nos EUA, e de uma exposição no Museu Instituto de América, na Espanha. Em 2019 abre, na galeria A Gentil Carioca, a individual “La Larga Noche de los 500 años”, mesmo ano em que realizou “Suturar Libertar” no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica e participou das coletivas “Histórias Feministas”, no MASP e “Estratégias do Feminino” no Farol Santander em Porto Alegre, e das residências PAOS GDL no México e Kaaysa em São Paulo. Leia a entrevista da artista na Philos: Marcela Cantuária: A globalização imperialista não entra em quarentena.
O livro Quero te dar o corpo total do dia, de Flávio Morgado e Marcela Cantuária entrará em pré-venda no verão da Philos. Até lá, fique de olho nas redes sociais dos artistas @marcelacantuaria e @oflaviomorgado e na revista @apalavra_solta.