Caio Fernando Abreu nasceu em 12 de setembro de 1948, em Santiago, no Rio Grande do Sul. Prodígio, ele se fez e se refez desde os seis anos de idade, quando produziu seus primeiros textos. Produzia intensamente. Vivia intensamente. Escrever, para ele, era um ato vital, tal como respirar. A palavra vinha de-dentro, do in, até virar uma flor ou uma dor. À sua frente, sempre papéis, canetas, anotações perdidas, rasuras riscos rabiscos, Virginia Woolf, sua máquina de escrever, e Robocop, seu laptop.
Do signo de virgem, com ascendente em libra e lua em capricórnio, ele, que tanto acreditava na astrologia, explicava pelo seu mapa astral sua compulsão por organização e pela eficiência. Lapidava exaustivamente seus textos, preocupando-se com o som, melodia, harmonia. E assim se enveredou por vários gêneros com maestria. Escreveu romances, o primeiro deles, aos 19 anos, intitulado Limite Branco (1970), que, nas palavras de Italo Moriconi no prefácio do livro, é “um romance sobre a adolescência escrito por um quase ainda adolescente, um pós-adolescente”, mas que nem por isso se mostra como uma narrativa fraca ou imatura; desde o início é possível ver a escrita poética do autor nos relatos mais simples do cotidiano, demonstrando um grande trabalho com a linguagem. Ainda conforme Moriconi, “de tão perfeito que é, de tão bem construído, arrisco-me a dizer que se posiciona como um clássico no gênero em nossa literatura”. É um menino que tem a força e a elegância de um gigante.
Seu segundo romance é Onde andará Dulce Veiga? (1990), que recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, e que, em 2008, ganhou uma versão cinematográfica, com roteiro e direção do seu amigo Guilherme de Almeida Prado. O romance narra, em linhas gerais, a história da procura por Dulce Veiga, cantora da década de 1960 que desaparece misteriosamente no dia da estreia do seu primeiro grande show. Essa busca pela cantora, vinte anos depois do seu sumiço, revela, também, uma procura do narrador por ele mesmo.
Em 1983, Caio Fernando Abreu publicou Triângulo das águas, um agrupado de três novelas que caminha pelos mistérios da existência, do místico, da busca por alguma coisa que sempre faz falta, da procura pelo entendimento de si e do outro, da simbologia dos signos da água. Era pela água, aliás, que o autor gostaria que esse livro fosse lido e sentido: “como um murmúrio do rio, um suspiro do lago ou um gemido do mar”, disse ele em “Para não gritar”, apresentação da sua reunião de novelas.
Etimologicamente, a palavra poeta tem seu radical proveniente do grego poiesis, que significa, em linhas gerais, fazer, fazer passar do não ser para o ser. O poeta, portanto, é aquele que faz e, ao mesmo tempo, está se fazendo no processo de sua escrita. Como um grande poeta dentro da prosa, Caio F. não deixaria de se refazer durante esse processo. Ainda em “Para não gritar”, o poeta-prosador afirmou: “eu simplesmente posso dizer que não o escrevi [o livro]: fui escrito por ele”. Cabe ressaltar, ainda, que pelo livro em questão, Abreu recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1984. O autor, em 1988, lançou mais uma novela, seu primeiro livro infanto-juvenil, intitulado As frangas, que dialoga com A vida íntima de Laura, de Clarice Lispector.
Caio F. era, em verdade, um grande experimentador e nutria-se de todas as formas de arte: música, pintura, cinema, teatro. Subiu aos palcos algumas muitas vezes, dando vida a alguns muitos personagens. Chegou a participar do Curso de Arte Dramática da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas abandonou, assim como fez com o curso de Letras na mesma instituição. Em 1987, junto com Luiz Arthur Nunes, assinou o texto e roteiro da peça teatral “A maldição do Vale Negro”, conquistando o Prêmio Molière pelo melodrama em 1988. Em 1997, organizado por Nunes e Marcos Breda, foi lançado seu Teatro completo. Doze anos mais tarde, o livro passou por uma rigorosa revisão dos organizadores e de outros nomes como Gilberto Gawronski, Luciano Alabarse e Suzana Saldanha, alinhando as oito peças em ordem cronológica de suas estreias, mais as fichas técnicas das montagens de estreia e fotos dos espetáculos. É, efetivamente, um baú de memórias, de lembranças, de uma literatura dramática e de mil possibilidades de ser.
O grande destaque de Caio F. são suas narrativas curtas. O autor se dedicou especialmente à criação de contos, densos e profundos, tanto na apresentação e variedade de temas quanto na sua forma e estrutura. Foram seis os livros na seara do conto, a saber: Inventário do irremediável, publicado em 1970 – reeditado pelo próprio autor em 1995, quando seu título foi alterado para Inventário do ir-remediável; O ovo apunhalado foi publicado em 1975, reunindo contos da juventude do autor e que muito nos lança à literatura fantástica; dois anos mais tarde, lançou Pedras de Calcutá, com contos, segundo José Castello em “Reportagem interior”, prefácio do livro, que “tratam da desilusão, do desespero, do medo, da asfixia, da impotência. Seus personagens se apavoram, surtam, adoecem, afundam, destroem-se”, mas curiosamente é desse mesmo arruinar-se que atentamos à grandeza de existir e resistir.
Em 1982, foi lançado Morangos mofados, livro de maior expressão do autor, que aponta as dores, as angústias, os fracassos, os medos, a esperança e desesperança, os encontros e desencontros, a sexualidade, a marginalização, o amor e o desamor, todos esses sentimentos ou ações que, em certa medida, envolvem-nos e atormentam. Nesta obra, o escritor versa sobre a complexidade da natureza humana, apontando os sentimentos mais confusos, os questionamentos mais profundos e os posicionamentos mais difíceis. Sobre Morangos mofados, sublinha Heloisa Buarque de Hollanda, em “Hoje não é dia de rock”, que o livro “não deixa de revelar uma enorme perplexidade diante da falência de um sonho e da certeza de que é fundamental encontrar uma saída capaz de absorver, agora sem a antiga fé, a riqueza de toda essa experiência”. É preciso tirar da putrefação, paradoxalmente, a germinação da vida.
Já em 1988, Caio Fernando Abreu publicou Os dragões não conhecem o paraíso, considerado por muitos críticos o melhor livro do autor – o que aponta a década de 1980 como de grande expressão na literatura de Abreu, pelo conjunto da sua obra neste período. Essa obra entrelaça treze contos minimalistas e viscerais sobre o(s) (des)amor(es), que golpeiam o leitor, ficando este, com citação de José Castello em “Tristes e felizes”, “com o ônus do mal-estar”. Caio F. inteligentemente orquestrou um livro em que, segundo ele mesmo, o leitor pode lê-lo como treze histórias independentes ou como uma espécie de romance-móbile, “onde essas trezes peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras às outras, para formarem uma espécie de todo”, todo altamente poético, elaborado, crítico e descritivo.
Em 1995, Caio Fernando publicou Ovelhas negras, “livro que se fez por si durante trinta e três anos”, reunindo uma série de pequenas narrativas que não passaram pela peneira-crítica de suas obras anteriores de igual gênero ou até mesmo foram proibidas pela censura. Com a morte próxima como único destino possível, Caio F. tratou de revisar e reorganizar toda sua obra, porque, segundo ele, “não quero que abram meu baú, após minha morte, e publiquem porcarias”. O livro-rebanho do autor gaúcho soma textos inéditos e alguns poucos que foram publicados em antologias, revistas ou jornais, mas todos eles, ainda citando o autor, são “marginais, bastardos, deserdados”. Abreu foi contemplado, mais uma vez, com o Prêmio Jabuti de Literatura pelos livros Os dragões não conhecem o paraíso, em 1989, e Ovelhas Negras, em 1996.
Em 25 de fevereiro de 1996, aos 47 anos, ainda menino, ainda jovem, ainda tanto, Caio F. partiu, silenciando sua máquina de escrever, mas deixando suas linhas e versos que penetram fundo n’alma. Em sua produção literária, a priori, o leitor é tomado por certo estranhamento quanto à estrutura de suas obras e quanto à linguagem, visto que elas seguem o caminho oposto ao padrão tradicional da escrita literária. O que se observa, de maneira geral, é a alternância de narradores; a fragmentação de cenas; a mistura da linguagem formal e informal; a aproximação a outras culturas, sobretudo a afro-brasileira; a alusão ao místico, ao astrológico, ao que não se vê, mas em que de certa forma se confia, a certa fé portanto; a agoniante introspecção criadora de seus personagens, marcada por um realismo psicológico, catártico e também confessional; a intertextualidade quase que frequente, dialogando com outros textos literários, canções, filmes e pinturas, e sobretudo uma intratextualidade. Mais: Caio Fernando Abreu dialogou com seu tempo, história e sociedade. Levou à (sua) literatura as dores de seu povo, as tristezas de um tempo assolado pelo medo, pela repressão, pela violência, pelo silêncio imposto, resultante de um turbulento período político e social nacional.
Além dos romances, novelas e contos, Abreu se debruçou sobre as crônicas que, trazendo o furor do cotidiano, são costuradas por um olhar humano, elegante e ácido. Ainda que o autor não gostasse de publicações póstumas, segundo pensamento de Marcelo Secron Bessa, em 1996, poucos meses após sua morte, foi lançado, com organização do seu amigo Gil França Veloso, o livro Pequenas epifanias, reunindo crônicas publicadas entre os anos de 1986 e 1995 no jornal O Estado de S. Paulo. Em 2012, as pesquisadoras Lara Souto Santana e Liana Farias organizaram a obra A vida gritando nos cantos, um compilado de crônicas inéditas em livros, escritas também no jornal supracitado entre 1986 e 1996.
Cabe ainda destacar algumas obras de grande relevância sobre Caio Fernando Abreu: em 2002, Italo Moriconi organizou as extensas, profundas, variadas e poéticas cartas que Caio F. escreveu aos amigos íntimos e aos familiares, intitulando esta reunião de Cartas; em 2012, foi publicado, organizado por Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima e Silva, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu, que reúne cento e dezesseis poemas escritos entre as décadas de 60 e 90, reafirmando ainda mais uma completude do poeta Caio Fernando Abreu; em 2009, Paula Dip escreveu a biografia Para sempre teu, Caio F.: cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, mergulhando na vida e na obra do autor em mais de 400 páginas – livro este que foi, em 2015, transformado em documentário por Candé Salles; em 2016, escrito também por Dip, foi lançado o livro Numa hora assim escura: a paixão literária de Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst, que reúne as correspondências trocadas pelos escritores cuja relação era a justaposição brigas-e-afetos; em 2018, a Companhia das Letras lançou o compilado Contos completos, que reúne pela primeira vez os seis títulos de contos do autor em ordem cronológica.
Caio F. foi porta-voz de muitos dos nossos sentimentos e pensamentos. É o “escritor da paixão”, na alcunha de Lygia Fagundes Telles; paixão que etimologicamente carrega a dupla concepção de sofrimento e de sentir; paixão que é inteira dor, dor que se é como condição humana. Seus contos, crônicas, novelas, romances, peças de teatro, poemas, cartas, que buscam tanto por um sentido, uma compreensão, um entendimento da vida, levam-nos, conforme pontuou Castello, “a provar da instabilidade do mundo”. Somos frutos dessa inconstância que soma quedas, tropeços, mortes diárias, renascimento, elevação, construção de si, solidificação e novamente, não mais que repente, outra queda, outro tropeço, outra morte…
No entanto, apesar de todas essas desilusões e mazelas do mundo, o “biógrafo de emoções” acreditava num happy end. Em suas obras, expôs essa busca e confiança pelo final feliz, ainda que os caminhos para se chegar lá – e se existisse efetivamente o lá – fossem árduos, dolorosos e obscuros. Talvez por isso, por tantos sentimentos e sensações, por tanta humanidade, por tantos baques e por alguma fé ou pequenas-esperanças reacendidas nas ínfimas frestas de luz é que Caio Fernando Abreu fascina cada vez mais leitores e se reafirma como um grande expoente na literatura brasileira.
Essas são tuas rosas,
Caio,
que não morrem
nunca.
Bruno Pereira (Rio de Janeiro, 1989). Beletrista, professor, especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas. Atualmente é mestrando em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e integra a equipe editorial do periódico Revista do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea.