Havia acatado a tarefa de seguir contando exemplos do que trouxe da última vez como um uso ético-poético do sentindo e em seus possíveis desdobramentos analíticos. O que acabou resultando em uma tarefa pretenciosa. Quis agarrar tais exemplos, quis agarrar poesias, como quem agarra borboletas. Procurei as borboletas, por dias, do lado de fora. Depois de longo tempo constatei que elas estavam do lado de dentro, no meu estômago.
E ultimamente estas borboletas só tem se sacodido quando tento escrever.
O vazio que ocupei desde então, cheio de ideias e promessas, serviu para fazer o tempo passar. Um tempo em que não fizesse nada além de pensar como resolver a tarefa que havia imbuído a mim mesmo – de fora pra dentro? Tais quais as borboletas que dentro de mim habitavam, o vazio do lado de fora também movimentava. Quando pensamos em escrever alguma coisa, durante semanas, isso já seria uma escrita?
Quantos meses já se passaram desde meu último escrito? Desde quando escrevo a mesma coisa, sem escrever? Quantos quarenta-dias já couberam dentro desse período, cheio de vazio, de tantas quarentenas? Deixo a vocês a pesquisa deste número: 40. Por que logo quarenta? O que serviu para crermos que em quarenta dias um contaminado pode ser avaliado digno de retornar ou não aos outros civis? Ou que entre o Carnaval – ah, saudades! – e a Páscoa, basta quarenta dias de restrições?
Quarenta…
Dos vazios que me acompanhavam a cada ideia de escrito, ainda que não realizado, os encontros se mantinham. Pois se há uma porção de distância – vazia – entre os corpos, também todo corpo passou a ter a mesma distância. Paris, Santa Catarina ou a vizinha na rua ao lado. Diante de tantas possibilidades, qual sentido tomar? Há alguém que saberia me dizer, me ensinar, como se aproveita da melhor maneira tanta possibilidade? E como tirar a máxima produtividade desse tanto de tempo vazio que me sobra?
Num destes encontros possíveis e cheio de promessas produtivas, outro sentido contido no termo contrafaccionista, o qual talvez coubesse bem à prática psicanalítica. Quando há transferência numa análise, isto é, quando o lugar que o analista ocupa é legitimado pelo analisando como o lugar ocupado por alguém que sabe, isso põe o discurso a andar. É impossível que o analista possa saber de tudo, e não digo só do conhecimento adquirido em livros, aulas e palestras, mas de saber o particular da vida de cada sujeito que lhe procura. Mas é sustentando esse lugar de saber, que se abre espaço para o não saber – ainda que um tanto de analistas não ocupem esse lugar, bem como um tanto de gente que o ocupa não serem analistas.
Contrafaccionista também pode querer dizer aquele que vai contra a ação de fazer. De um ponto de vista, o analista também precisa ir contra sua vontade de curar o sujeito a qualquer custo, o que Freud nos alertava como furor curandis, já que isso levava ao risco de se manter o analisando num lugar de objeto, mais próximo ao lugar do aluno – que etimologicamente deriva de um sem luz – ou do lugar do paciente na medicina – um corpo que não fala, um puro organismo que funciona bem ou funciona mal. É não fazendo, sustentado por um não sabendo, que se aposta também na possibilidade do analisando mudar sua posição: “fale, vai falando… mesmo que não saiba bem, isso vai dar em algum lugar”.
Concluindo que tentar escrever a poesia aqui, querendo capturá-la, além de uma tarefa pretenciosa era também impossível, tento agora escrever indo de encontro ao vazio – pois se escolho deixar as borboletas voarem, eu preciso de espaço.
Quando se usa a linguagem é ela mesma quem se usa, se furando na medida em que tenta capturar algo. Estamos tão habituados a olhar para o que tentamos capturar, que mal notamos os vazios que vão sendo deixados enquanto a linguagem se usa a si mesma. O sentido, produto de significações, advém de uma espécie de movimento pseudópode que caminha no tempo do discurso, tentando criar algo novo ao mesmo tempo em que tenta encobrir que tudo que acabou de criar não é mais do mesmo. Fazer sentido serve para fazer semântica – significando – ou fazer física – vetorizando. Seja qual for o caso, indica alguma direção.
A busca por jogos online cresceu, como forma de dar sentido ao vazio da distância e de aproveitar a possibilidade de encontrar qualquer um. Mas nem todo jogo pode virar jogo online. O jogo Jenga é um exemplo.
Quando se joga Jenga, pode-se tanto criar regras de competitividade, para saber quem ganha ou perde, ou então jogar num modo mais coletivo – e neste modo todos jogam juntos, tentados a ver aquela torre indo na direção do teto, subindo. A torre começa sólida, sem vazios. É retirando uma peça de algum lugar e colocando-a no topo que a torre cresce. O objetivo é um só: não deixar a torre cair! E deste objetivo, notamos algumas regras: se começa de baixo, a torre cai; se começa de cima, a torre não sobe. É fazendo vazios na torre partindo do meio, que ela muda e pode crescer. Mas não se adicionam ou se subtraem peças: são sempre as mesmas, que estavam ali desde o começo, agora reposicionadas. Ótima alegoria sobre o uso da linguagem, que produz vazios em si mesma para, correndo no tempo, produzir algum sentido.
Lacan nomeou de tesouro dos significantes um possível lugar de fazer o discurso funcionar, tomando o que o analisando diz não enquanto um outro que estaria ali para bater um papo, mas como um botando seu não saber pra funcionar, promovendo vazios e, talvez como num jogo de Jenga, fazer a torre se movimentar, conduzindo o analisando a descobrir, em seu próprio tesouro, o possível rearranjo de peças que irá decifrar seu sintoma.
Quando eu tinha um ano de idade, Robert Grebler completou a maior torre de Jenga alcançada até hoje. Ele entrou pra história, porque optou por não tentar fazer a torre crescer mais do que isso. Parou aí. E sabem quantos andares tinha a torre?
Quarenta!
Quando tentamos usar a linguagem para fazer alguma coisa, parece que é sempre a mesma coisa que acaba voltando. Será, talvez, que quando usamos a linguagem para fazer coisa alguma, qualquer coisa ou até mesmo coisa nenhuma, é ai que damos alguma chance de ela mesma se fazer poesia?
Após redigir esse texto, descobri que há não só uma, mas diversas opções de jogos tipo Jenga online… Mas se há alguém que de fato considere tal possibilidade, a vida já não faz mais sentido algum.