Algum lunático batia na minha porta. Odiava ser despertado após um difícil dia de trabalho. Tinha certeza de que não poderia ser nenhum amigo ou mesmo parente. Eram duas e meia da manhã e, por conta do frio intenso, hesitei um pouco antes de sair da cama, na esperança de que desistisse e fosse embora. Mas não houve jeito. O estranho visitante continuava a bater com força e logo me vi deslizando pelas escadas, sonolento. Assim que abri, minha surpresa não pôde ser menor: um rapazola corpulento, com vasta cabeleira, mal se aguentando de pé na soleira, bastante coberto de neve. Meu aborrecimento foi visível e acredito que ele tenha notado isso apesar do olhar perdido.

– Olá, Grigorovitch – começou ele, pressupondo alguma compaixão de minha parte – Espero que não estejas tão aborrecido com essa visita pouco usual.

– Não me aborreceria tanto se adivinhasse o real motivo da tua inesperada visita – cumprimentei-o um tanto amargo – Com isso, tudo seria resolvido mais rápido e eu não demoraria a voltar para minha cama quente.

– Posso entrar? Está bem frio hoje.

Fiódor Dostoiésvki entrou cambaleante, quase se jogando em uma velha poltrona de família. Fiquei parado, de braços cruzados, durante alguns longos minutos, esperando que ele conseguisse esboçar algumas palavras. Trocamos olhares e ele, de súbito, sorriu como uma criança que devia ter feito uma travessura. Chegava a ser espantoso vê-lo em estado tão deplorável. Sempre que nos encontrávamos, Fiódor parecia mais discreto, com um olhar introspectivo em tudo. Todavia, para o meu desapontamento, ele vinha bebendo demais nos últimos tempos, gastando o que não possuía em uma boêmia inútil. Já impaciente pela momentânea perda do sono, resolvi interrogá-lo sem mais delongas.

– O que queres dessa vez?

– Antes de qualquer coisa, gostaria de me desculpar por vir te ver nesse horário impróprio, mas precisava falar contigo com certa urgência.

– Bem, estou te ouvindo…

– Preciso de um empréstimo, Dmitri.

Era o que eu temia: estava novamente sem dinheiro. De pronto, pensei em lhe passar outro triste sermão, mas sabia que acabaria sendo inútil – Fiódor há muito já não me ouvia mais. Ainda assim, reconheço que aquilo não foi o que mais me aborreceu na hora. O que me agastava de verdade era saber que ele havia ficado cego. Cego por aquela detestável vontade de parecer agradável aos “amigos”. Cego por não enxergar que estava se afundando cada vez mais. Contudo, eu sabia que essa vontade tinha raízes mais profundas em sua personalidade.

– Tens que parar com isso, Fiódor.

– Do que estás falando, afinal? – disse ele, repentinamente intrigado.

– Tens que parar de fugir dos próprios problemas.

– Não tenho tantos problemas assim, Dmitri – redarguiu enquanto tirava a neve do casaco – Estou apenas precisando de um empréstimo para poder voltar para casa.

– Vou até a cozinha ver se ainda há café.

Saí da sala aborrecido, deixando Fiódor a sós com seus pensamentos. Não era a primeira vez que ele me pedia dinheiro emprestado, mas de todo coração gostaria que aquela fosse a última. Desde que o pai falecera de modo trágico em 1839, eu já havia percebido que ele não era o mesmo de outrora. Por mais que quase sempre desconversasse, eu estava muito certo de que no fundo Fiódor se julgava culpado pelo ocorrido.

Apesar de conhecê-lo há pouco tempo, sabia que era um dos poucos e verdadeiros amigos que ele ainda tinha. Não só a paixão pelas letras nos cativava, mas nossos próprios dramas pessoais também. Porém, Fiódor conseguia ainda ser mais distinto. Sua personalidade enigmática ficava cada vez mais evidente a ponto de Fiódor quase se isolar emocionalmente do mundo.

– Bebe, ainda está quente – ofereci-lhe uma pequena xícara, ainda lançando um olhar grave.

– Não há mais vodca? – aceitou um pouco contrariado, esquadrinhando a sala de repente.

– Já te embriagaste bastante por uma noite, Fiódor.

– Fédia… – corrigiu ele, efusivo – Por favor… Era como minha mãe costumava me chamar. Sinto como se ela estivesse aqui esta noite…

– Bebe de uma vez esse maldito café, homem! – voltei-me para outro lado, tentando não perder a paciência – Estás bêbado e precisas te recuperar.

– Recuperar-me? – disse em tom quase cínico – Mas para quê?

– Para termos uma conversa definitiva de uma vez por todas! – repliquei eu, com indisfarçável aspereza.

Embora tivéssemos quase a mesma idade, eu me sentia um pouco responsável por Fiódor desde que ficara órfão. Para alguém com vinte e poucos anos, a vida deveria começar e estar sendo desperdiçada em jogatina e bebedeiras. Para mim, aquilo era sem dúvida um grande atraso. Digo isso porque, apesar de tudo, Fiódor era ambicioso e sabia exatamente o que queria fazer de sua vida. Certa vez, ele me confidenciou que tinha alguns escritos guardados, mas não os achava muito sérios. De certa forma, a morte do pai de Fiódor havia lhe aberto uma oportunidade, a que ansiava há muito tempo. Por conta disso, não fiquei realmente surpreso quando ele me disse que tinha abandonado a Escola de Engenharia Militar. Sua ânsia ali dentro era grande demais e, de fato, Fiódor detestava aquele lugar.

– Esta será a última vez que te empresto dinheiro, Fiódor Dostoiévski – declarei eu bem resoluto, entregando-lhe o maldito dinheiro – Daqui para frente, não contes mais comigo para isso.

– Ora, Grigorovitch, fica tranquilo! Não pretendo voltar aqui tão cedo… A não ser para discutirmos literatura. Por ora, sabe que estou lendo Consuelo de George Sand – sorriu ele, levantando-se para partir – Agora, se me dás licença, vou deixá-lo sozinho.

– Espera! – pus minha mão sobre o seu peito em tom imperativo – Eu ainda não terminei. Existe uma condição para que tu leves esse dinheiro.

– Do que se trata, afinal? – disse Fiódor, soçobrando de novo na poltrona.

– Não quero voltar a te ver bêbado pelas esquinas de São Petersburgo.

Naquele momento, Fiódor estremeceu contrariado. Seu rosto se transfigurou a ponto de eu perceber em seus olhos uma raiva repentina. Quando terminei, ele ficou me olhando por alguns instantes, como se se perguntasse por que eu lhe dissera aquilo. Ou melhor, o que eu pretendia com aquelas palavras. Entretanto, mantive-me firme diante dele. Após desviar o olhar aborrecido, Fiódor finalmente voltou a me encarar. Levantou-se e eu logo esperei paciente pelo que retrucaria com virulência.

– Não preciso deste tipo de amizade, Dmitri Grigorovitch. Agradeço-te pelo empréstimo, mas não preciso de outro pai em vida. Adeus! – Fiódor dirigiu rapidamente seus passos para a porta.

– Por que não admites que sentes a falta dele, Fédia? – declarei às suas costas, mal me contendo – Para que mentir para ti mesmo?

– Porque eu realmente não sinto a falta dele! – disse ele, voltando até mim com um ar ameaçador – E isso não te diz respeito, Dmitri. Por que insistes nesse tema comigo?

– Tu não tiveste culpa pelo que aconteceu com ele. Por Deus, tu nem estavas lá, não podias fazer nada e…

– Para o diabo! Cala-te, Dmitri Grigorovitch! És um perfeito idiota por não saberes o que diz! – Fiódor foi ficando cada vez mais nervoso, mas no fundo eu sabia que o estava ameaçando.

– Pensas que não percebi o quanto mudaste desde que teu pai morreu? Agora tu sais por aí com esses teus amigos aproveitadores e perdes todo o teu dinheiro nas cartas! Se achas que esse é o melhor caminho para superar a dor, estás muito enganado, Fiódor.

– E quem consegue de fato superar alguma dor nessa vida, Dmitri? – replicou ele, disfarçando a consternação na poltrona – Estás louco? Acreditas mesmo que seja possível tamanha proeza? Pois me deixe dizer o que penso a respeito da minha dor: é um doce amargo que só a mim compete mensurar… É algo extremamente íntimo, que move os seres para os seus próprios destinos… Por isso, não te atrevas a me falar de dor, que tento superar a minha dor, porque ela supera a si própria… E não pode ser arrancada tão facilmente como tu imaginas.

– Ao menos deverias tentar dar vazão a essa dor de alguma forma – disse eu, depois de alguns segundos, pensativo – Porventura já tentaste escrever sobre isso? Quem sabe o peso da culpa não se tornaria menor? – aproximei-me em sinal de paz.

– Raios me partam! Insistes ainda nisso! – Fiódor agarrou-me pela gola do pijama, truculento, soerguendo do chão – Pela última vez, Dmitri Grigorovitch, para com…

– Fiódor! – aquele corpo pesado se tornou subitamente flácido e seus dedos se deixaram escorregar pelo meu pijama.

Ele havia desmaiado. Tivera mais uma crise de epilepsia. No chão frio, pude ver Fiódor Dostoiésvki se debatendo como um moribundo em triste agonia. E aquela imagem sensivelmente decadente em 1845 jamais me abandonou enquanto estive vivo. Em verdade, havia sido a primeira vez que aquilo acontecia bem diante de mim.

Tempos depois, passei a acreditar que talvez eu tivesse sido o maior culpado pela crise de Fiódor. Embora ele nunca viesse a saber, guardei aquela memória por muito tempo. Chegara a pensar que eu mesmo o tinha matado com minhas palavras. Pior do que o medo de perdê-lo ali na minha casa foi a própria ideia de uma eterna responsabilidade.

Mas logo me vi fechando a porta ainda entreaberta e lhe trazendo uma velha coberta grossa. Ali, em meus braços, pedi então pela primeira vez a Deus não o deixasse ir naquela hora. Somente quando Fiódor recobrou a consciência, tive certeza de que não o havia perdido para sempre. Mas creio ter aprendido algo sobre erros e acertos depois disso.

Erros nos tornam mais humanos do que os próprios acertos. E bem mais do que imaginamos. Tinha ficado feliz por vê-lo novamente e desde então decidi nunca mais tocar naquele tema tão caro para Fiódor Dostoiévski. “Acho que terás que passar este resto de noite aqui, Fédia”, sorri eu enquanto o via reequilibrar a respiração.


Josiney Ribeiro da Silva (Macapá, Amapá, 1981). Tenho trinta e seis anos, sou formado em Comunicação Social e pós-graduado em Cinema. Moro atualmente em Curitiba e sempre tive paixão por escrever.

Publicado por:Philos

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