Eu tenho uma creca de estimação. Está no topo de minha cabeça, soberana. Cultivo-a assim: a cada um ou dois dias, embora seja difícil aguentar tanto tempo, descasco-a com a unha, que mantenho propositadamente grande para facilitar a tarefa, bem como torná-la mais prazerosa. Não a arranco de uma vez (a creca); não faz sentido. Vou enfiando a unha lentamente em suas bases, cercando-a, levantando as beiradas da ferida e deixando o centro para o final. Às vezes observo meus dedos, que se avermelham nas pontas. Não sinto prazer à vista do sangue; confesso que me ataca até uma ligeira náusea. Nada, porém, que me faça desistir desta benéfica e milenar terapia.
Isto já dura há algum tempo, o que me surpreende. Nunca havia cultivado uma ferida antes. Estranhamente, nasceu-me outra logo ao lado, menor, e que me serve para realizar uma espécie de revezamento. Posso cutucar indefinidamente a cabeça, dividindo o coçar segundo a metodologia fordista. Produzo cascas diariamente, e umas das maiores satisfações que o ser humano pode ter nesta vida é ver com habitualidade estas graúdas peles retorcidas e ásperas entre os dedos; contemplá-las com uma sensação de vitória indefinível; ser feliz em segredo, absolutamente.
Ninguém sabe que elas existem, as crecas. Minha esposa por vezes pergunta: em que é que você tanto mexe nessa cabeça? Ao que eu respondo dissimulado: uma coceira, acho que piolho. E ela diz: eca! afastando-se, o que me permite continuar sendo feliz, egoística e transcendentalmente feliz, na minha solitária atividade. Mas preciso ter cuidado, tenho certeza de que em algum momento ela pedirá para ver o que tenho ali, assim que vencer o medo dos ameaçadores piolhos. O primeiro ataque já veio quando disse: vá ao médico, ora bolas, que mania terrível de ficar empurrando com a barriga seus problemas de saúde! – Gritou um palavrão e deixou o quarto, onde agora hiberno, coçando a cabeça, ela achando mesmo, coitada, que começava a pegar meus pseudopiolhos.
O cabelereiro deve ter visto pelo menos uma delas (das crecas) porque perguntou, antes de começar o corte: dói aqui? – e eu imediato: de jeito nenhum! – imaginando, o que se mostraria correto dali a um minuto, que a passagem do pente me proporcionaria um prazer ainda maior. Devo ser masoquista, não sei. Também não me preocupo, desde que não pretendam curá-las, as crecas. Sempre há desse tipo de energúmeno que deseja patologicamente ajudar os outros, sem perceber, claro, que sua necessidade é em si mesma uma doença. Revolucionários a mesma coisa. Todos esses defensores, em suma, de um dever ser qualquer me dão asco, com suas premissas condicionadas que eles não enxergam. Sobe-me ao peito uma revolta, juro! Felizmente, tenho as feridas – que nestes instantes odiosos descasco sem pensar duas vezes.
Como não poderia deixar de ser, tornei-me um sujeito melhor. A mulher notou-o e agora costuma enunciar: você está diferente, mais calmo, mais amoroso. E é verdade. O problema é que desconfia de algo, olha-me estranho; outro dia pegou meu telefone e olhava as mensagens – vi-o no reflexo da televisão. Reconheço seu mal: ciúmes. Pensa que tenho outra, afinal, não é verdade que os homens se tornam mais afetuosos quando têm amantes? Quando entendi sua suspeita, tive que me trancar no banheiro para rir, ininterruptamente, por dez minutos. Foi tão hilário que por um momento levei a mão à cabeça, preocupado, o olhar tenso no espelho da farmácia, mas ufa, elas continuavam lá.
O cachorro agora lambe minha perna durante quinze minutos, como se eu fosse um Deus, e mamãe me observa indagadora quando vou almoçar aos domingos. O que está acontecendo? – pergunta – você nunca vem almoçar aos domingos. Olha meus cabelos, e tremo. Que bagunça é essa na sua cabeça, diz, avançando as mãos. Nada, mãe, preciso de um novo corte, esse é muito juvenil. A velha tem olhar de lince, mais um segundo e estou perdido. Até o próximo domingo, mãe! Ela insiste em me alisar a cabeça, como quem não quer nada, e eu a afasto beijando-lhe a testa. Mal entro no carro, para aliviar a tensão, ponho-me a gozar da volúpia, é sempre bom antes de dirigir.
No trabalho, os colegas perguntam-me se estou fazendo Yoga. Digo que é meditação. Qual escola? Crecduyerva, respondo sem piscar. Deixam-me em paz. O chefe prometeu-me uma promoção se continuasse vendendo como nas últimas semanas. Olhe, está de parabéns, os clientes têm comentado! Ao voltar para casa, eu que habitualmente sou um chato antissocial, converso meia hora com o porteiro. Sem que me desse conta, um dia desses, dei esmola no sinal ao sujeito que – sempre contra minha vontade – joga água imunda no meu para-brisa a pretexto de limpá-lo. Acho que num reflexo inexplicável, um sorriso – meu! – acompanhou a moeda de um real.
Ah, mas a felicidade é uma flor delicada! Vivi um período, cuja extensão sou incapaz de definir, nas nuvens, meus pés levitando no ar. E não é de hoje: quem se distrai assim, a vida atropela. Belo dia, levo a mão à cabeça, procuro entre os cabelos minha redenção diária e nada encontro, a não ser uma superfície lisa e irritante. Contenho a respiração, os dedos ágeis a farejar sinais de sangue. Nada. Vou ao espelho, tentando inutilmente ver algo num ângulo impossível. Bufo, não é possível. A esposa entra de súbito, deixei meu espelho aí, pergunta, e eu: não podia bater antes de entrar? Seu olhar é de espanto incrédulo. O cão, que a seguia, faz meia-volta e parte bocejando.


Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Liberdade, pela editora Kazuá.

 

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Um comentário sobre ldquo;Volúpia, por Caio Lobo

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