Por último, decide andar até o metrô.
Tira o cigarro torto do maço amassado. Traga, embirrando o pulmão e sente a febre do corpo inflamado de ressaca. Uma dor na nuca, evita olhar para os lados. A rua espirra gente, amontoa cheiro. Na porta da estação, uma barraca de cachorro quente fumegando água de salsicha; do outro lado, a velha de lenço na cabeça estende a mão grossa. À frente, o vendedor oferece quinquilharias: corrente de metal vagabundo, móveis em miniatura feitos de arame, lanterna, chaveiro, Papai Noel do Paraguai que acende a vela presa na mão Ho! Ho! Ho! E o cachorro movido à pilha que late, late, late e dá cambalhota.
Prende o cigarro com o dedão e o dedo do meio. Arremessa numa só tacada para fora da calçada. Enfia as mãos no bolso. O vendedor fala, refala, explicando as muambas.
Compra o cachorro.
Sobe as escadas da estação. A sacola de plástico azul batendo na perna.
Senta e coloca a sacola com o cachorro entre as pernas. Encosta na janela e o galo na cabeça estala e o afasta. Não sai nunca. Desde a pancada.
No banco da frente, lateral, percebe a intenção de uma conversa. Um gordo, com os botões estourando a camisa azul esgarçada pela barriga, segura um folhetinho. Nossa senhora de Guadalupe. Já no “Posso Te Fazer Uma Pergunta”, a mão com desenho de cruz, salmo e ramo de arruda interrompe uma possível conversão religiosa.
A bobeira de querer ser moço novamente.
Moço para beber sem doer a cabeça ou enjoar o estômago, para andar insone pela rua, moço para cheirar pó barato sem os brônquios chiarem, como estão agora, sem adormecer a ponta dos dedos, como sente agora. Ser moço para meter em todas, gozar com o mesmo prazer do primeiro jato de porra da primeira punheta. Ser moço e não ter passado pesado nas costas, tatuagens feitas à força ou escolher os desenhos, pelo menos. Ser moço para não ter de olhar tudo e ver só passado.
No espelho, o cabelo branco saindo do couro cabeludo aqui, ali, e mais aqui. Ser moço novamente. Quem precisa de cabelo branco?
O trem sai do túnel.

Considerando que o Conselho de Sentença, ao apreciar a primeira série de quesitos, referente ao crime de homicídio qualificado que vitimou Silmara Queiroz de Almeida, reconheceu a materialidade e a autoria delitiva;

Inspira fundo. O estridor no peito. O gordo ouviu. Tenta decidir entre andar todas as estações. Ida e volta. Para aonde ir primeiro, visitar quem? Tira o cachorro da sacola. Um leve sorriso involuntário no rosto.
A porta abre e fecha. Não entra ninguém. Esqueceu que hoje é feriado. A luz do trem pisca.

Considerando que o Conselho de Sentença não absolveu o acusado;

Ajeita o corpo no banco.
Difícil achar posição. Banco duro. Fazem de propósito. Assim, ninguém fica tempo demais sentado. O ar abafado começa a suar na sobrancelha. Que diabos! Tira o casaco. Um furo debaixo do sovaco. Nem percebeu.
210693 no pulso. O aniversário. Do outro lado, “Deus Tudo Pode” embaralhado numa cruz, perto de uma sereia com a cauda que vai até o ombro, desce para o peito, na águia nazista. De onde o gordo está, só dá para ver a cabeça. A suástica fica mais pra baixo. Desfigurada de queimadura.

Considerando que o Conselho de Sentença não reconheceu que o réu agiu sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima;

O trem chega à estação Tietê. Levanta, o apito da porta fechando e a sacola com o cachorrinho à pilha quase se prende ao fechar.
Passa a catraca. Entra na rodoviária. Repara aqui, ali, mais outro lá e mais outro. Todo mundo olhando. Uma senhora passa e fecha o casaco com as mãos. Idiota, tem medo até de pernilongo. Tira do bolso o dinheiro, uma nota de dois rasgou-se na ponta.

Considerando que o Conselho de Sentença reconheceu que o crime foi cometido por motivo torpe;

Embola o casaco para servir de travesseiro. Olha as imagens rápidas como quem não vê nada. Tudo novo. A tatuagem “Amor Só de Mãe” nas costas coça. Não dá para alcançar. Que vida! Ir sem rumo. Enfia a mão no bolso e retira o documento: DIP-SP 2905 06/10741.
Sente a coluna doer. Tenta endireitar-se na poltrona. Sente o estalo. O corpo todo quebrado. O cu dói. Redói, ainda da despedida.
O ônibus sai de São Paulo.

Considerando que o Conselho de Sentença reconheceu que o crime foi cometido com emprego de meio cruel;

Anda pela calçada da praia.
A brisa meio morna, meio laranja. Bate a sacola na perna. É outro ar. Sem suor da cambada. Sem bafo de cárie. Sem cheiro de vômito. Sem cheiro de mijo. De bosta socada com o pau. Sem cheiro de gente desgraçada.
Encontra um pedaço de sol caindo. Fecha o olho e deixa bater na cara. Sol sem ser quadrado, sem as sombras das linhas das grades. Sol amarelo, quente.

Considerando que o Conselho de Sentença reconheceu que o crime foi cometido mediante recurso que impossibilitou defesa das vítimas;

Senta no banco. A linha de mar à frente. Coloca a sacola do lado. Desamarra o cadarço. Tira a meia e guarda dentro do tênis. Sente os grãos de areia no chão. O chão. Quente de sol. O concreto morno. O cu para de doer, o fogo nas costas apaga. O pulso coça 210693. O três torto cai para a direita.
Os pés no chão.

Considerando que o Conselho de Sentença reconheceu que o crime foi cometido contra pessoa menor de catorze anos;

Em quinze anos. A primeira delicadeza: a onda molha o dedão do pé. Um arrepio sobe. A perna meio bamba. Deixa a cabeça cair para trás e ouve a lembrança do menino falando “Me dá Um Cachorrinho Papai”!

PELO EXPOSTO e considerando a vontade soberana do Conselho de Sentença, CONDENO o réu CARLOS Queiroz de Almeida

O sol se esconde no céu roxo. Acinzentando. As nuvens grossas. Vai chover daqui a pouco. Silmara pede “Por Favor”! Silmara fala “Não Foi Eu Quem Pegou O Dinheiro”. Silmara explica: “Eu Num Tava Fugindo”. Silmara grita: “Pensa No Menino”. A faca entra. A pele na lâmina parece papel. O estômago enche de sangue. A faca sai. Entra. Sai. Entra. Sai. Entra. Sai. Entra. Sai. O sangue gruda poucos segundos depois. Melaço escorrido no cabo e na mão.

em relação a vítima Silmara Queiroz de Almeida)

Água fria. A sensação de que isso aqui é vida. O mar encostando na pele. O mar, e não pele suada, ranço de sujeira grudando nos pelos, respingo de baba no rosto, porra vazando do cu, sangue espirrado na testa. O mar. O mar encostando no primeiro milímetro.
Abre os olhos.

em relação a vítima Ryan Queiroz de Almeida)

Ryan acordou. “Papai Você Trouxe Meu Cachorrinho”? Aniversário de seis anos. Levanta da cama. Os braços abertos. “Papai, Meu Cachorrinho”. O pijama do Frajola. A cara de traição de Silmara. O quarto turvo. A faca corta as cordas vocais. Um engasgo. Corta os tendões, veias, artérias do pescoço. A cabeça cai para trás. Um engasgo. O Frajola molhado de sangue grosso e escuro.

à pena privativa de liberdade de 44 (quarenta e quatro) anos e 06 (seis) meses de reclusão, no regime inicialmente fechado, o que faço com fundamento no artigo 386, inciso I, do Código de Processo Penal.

Tira o cachorro da sacola. Vira o botão para a direita. Começa a latir. Uma. Duas. Três vezes. Uma cambalhota. Volta a latir.
Tira do bolso o documento. Livre! Deixa cair na areia. O padre perguntando: “Está Arrependido Do Teu Pecado Meu Filho”? Já nem dá pra ver o fim do mar perto do céu. Escureceu. O padre contrai os lábios. Olha para trás, aquele quadrado de janelinhas. Joga o casaco no chão, o portão da penitenciária abre.
Publicada no Salão Nobre do Tribunal Popular do Júri da Comarca de São Paulo/SP, aos 20 de agosto de 1999, às 17h30min, saindo as partes intimadas para os efeitos recursais.

Registre-se.
Cumpra-se.

Água limpa. O corpo imerso na primeira água do mundo. Sal e Deus. Prende a respiração. O menino tenta abraçar o pai. A água batendo no queixo. Afunda no adeus.
Na areia, o cachorro late. Uma. Duas. Três vezes. Dá uma cambalhota.


Leonardo Richner (São Paulo, 1981). Publicou o livro de contos “Você, que nunca mais apareceu” pela editora Penalux. Também publicou com o coletivo 9/fora o livro de contos “Nove História – Nove Autores”.

Publicado por:Philos

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