I
O mistério é o grande deus dos homens e o egoísmo, seu epitáfio. A frase que aqui disponho era a epígrafe de um dos livros dourados que foram dados por desaparecidos após séculos de invasão e domínio do principado de Seitão nas terras da Camúria Ocidental. A coleção, que dispunha de sessenta volumes, cada um possuindo em torno de mil e quinhentas páginas, tentava reconstruir todos os passos da história já registrada sobre a terra, desde os primeiros gritos silenciosos até o fechar choroso da última réstia de energia que se tem notícia.
Os livros não possuem assinatura, não se sabe quem escreveu, tampouco se quem escreveu viveu boa parte da história ou se captou da tradição oral, ou mesmo de uma biblioteca secreta – da qual se desconfia da existência – escondida debaixo de um deserto escaldante. Metade da coleção contava a história do mundo humano sob a égide de cálculos matemáticos, provando que havia um arquiteto e administrador e que tudo saíra como planejado; e a outra, a partir de imperfeições, contando a evolução ao acaso. Da primeira leva, todos ainda restam desaparecidos. Da segunda, alguns foram recuperados após a batalha de Saint-Dîné, quando a Terra já não estava habitada, pelo menos das formas de vida que até então conhecíamos. Hoje, sabemos como está tudo diferente.
Quando o novo jesuíta Moisés de Rio Branco encontrou um dos livros semiescondido pela areia fina, sob restos de uma antiga catedral, gritou aos camaradas que o seguiam: Finalmente, Platão e Nostradamus tinham razão. O livro não ficou com ele, foi parar nas mãos de um rei sanguinário que queria entender um pouco mais sobre a arte da guerra. Para preservá-lo, contratou sete copistas de índole clérica pré-reformista para manuscrevê-los e preservar suas peculiaridades. Uma de suas cópias me caiu em mãos uma vez. Tentarei ser fiel ao vos transcrever o que li.
II
No princípio, era o caos. A forma adquirida de Gaia veio assim, sem explicação, coisa monumentalmente grega, salvo aquela do verbo que por muito tempo foi aceita, mito da palavra que era Deus e que, séculos mais tarde, far-se-ia carne, carne de cordeiro. Tudo era móvel e disforme. Havia fogo? Tudo era suspenso. Havia monstros? Não me perguntem, pois essa onisciência é sempre falsa. Conto o que ouvi (ou não), modificada oratura clássica de tempos longínquos. Fico com o nada, que, isso sim, sempre esteve lá antes de tudo e lá estará após o fim de tudo, quando o que conhecemos for engolido, inclusive a tabacaria do Pessoa. Isso! Havia o nada, explicação sempre usada e reinventada segundo o mito e o tempo do qual se conta. O importante é que no dançar de cadeiras sensuais entre Gaia e Urano: viva o fiat lux, e assim se fez o céu, a terra e o submundo.
Hoje, nesta fotografia que esquizofrenicamente tento descrever, vejo o novo caos, retornado, revivido, recriado. Contudo, vendo de cima com essa pseudo-onisciência de demiurgo, é nitidamente embaçada a consciência se estamos no apocalipse ou no novo gênesis. Talvez seja apenas um traço do retrato da história dos homens. Entretanto, aproveitando-me de um classicismo rude, sem fazer uso das novas linguagens da época, coube-me ser uma espécie de João Batista. Caso alguém se pergunte quem realmente é este que lhe entra vida adentro com uma estapafúrdia história irreal ou sonhada, digo-lhe que estou mais para um Saulo a caminho de Damasco.
Fato é que Cronos nunca foi vencido senão por Zeus. E o titã pai de todos, filho de Urano, está ainda aí para não nos deixar mentir, vencendo e devorando quando acha que é necessário. Cronos tem face de Tânatos, foice que visita sem aviso, clichê de todos os tempos. Mas deixemos as coisas virem à tona no seu devido tempo. A curiosidade que muitos bens trouxe à humanidade gerou também a ganância. E tudo isso, mais o que virá após, já foram previstos por Tânatos desde que o mundo é mundo. A questão é que nunca se sabe quando. É, amigos, viver é negócio muito perigoso, já dizia um certo neologista brasileiro. Em suma, com história mitificada ou não, dou início às minhas linhas.
III
Muitas coisas foram as primeiras causas do quase desaparecimento da nossa espécie. Seria impossível elencar todas. Segundo algumas páginas amareladas e arrancadas de algum livro antigo, que foram encontradas pelos estudiosos pós-humanos. Nessa época, os seres que dominavam a terra eram chamados de homo sapiens, classificação deveras estranha, pois a sapiência desse povo era deveras relativa. Desde o momento em que perceberam o buraco no qual estavam se metendo, não passou trinta anos até que a sociedade e o planeta entrassem em colapso e sobrassem apenas alguns exemplares dessa espécie tão curiosa.
Dizem que tudo ficou assim após a extinção da Amazônia, uma floresta tropical que possivelmente teria existido próximo à linha do Equador. Os anciãos do G-24 anunciaram as trombetas do fim. Apenas cento e quarenta e quatro sobreviveram. Dizem que a biblioteca interplanetária possui o único exemplar de sete mil páginas sobre esse furo histórico e, por motivos misteriosos, guarda-o dos olhares curiosos e nega veemente sua existência. Depois de todos os escândalos dos últimos tempos, não seria nenhum exagero, nem entregar-se a teorias de conspiração, acreditar na existência de tal objeto e na postura dos curadores dessa biblioteca estapafúrdia.
Nessa época, o pólo sul era na Antártida, terra que chamamos hoje de Nova Tebas. Conta-se que durante milhares de anos ali só havia gelo. Mas, na época da quase extinção do homo sapiens, houve um superaquecimento global, fazendo com que o gelo ali presente derretesse e permitisse que a vida se desenvolvesse. Os cento e quarenta e quatro sobreviventes levaram para lá várias espécies de plantas e alguns animais que restavam. Quase morreram, mas eis que se fazem novas todas as coisas! Mal sabiam eles que ainda havia muito choro e ranger de dentes.
IV
A comunidade era baseada na divisão igualitária entre todos os seus habitantes. Tudo o que era produzido era dividido igualmente entre as pessoas que se dividiam em todo tipo de trabalho: plantio, construção de armas para caça, construção de casas, limpeza, trato dos animais etc. Eram divididos em casas que duravam apenas noventa dias. Moravam na mesma cabana para procriação. Se depois desse tempo, a mulher não engravidasse, havia um sistema de revezamento, ela ia para uma cabana e outra tomava o seu lugar. Era proibido qualquer tipo de posse. Um velho profeta insistia em não participar dos afazeres, pois dizia não acreditar no restabelecimento da raça humana.
Décadas mais tarde, notou-se que um ou outro começou a roubar um pouco mais para si das cebolas que produzia, outro guardava um pouco mais de tomates e assim a discórdia começou a aparecer. Houve desentendimentos entre antigas nações, e os povos se separam em algumas divisões dentro da própria tribo, seguindo preceitos de língua: alemães, holandeses, austríacos; portugueses espanhóis e latino-americanos; ingleses e americanos; franceses e italianos; japoneses, chineses, coreanos; russos com ucranianos. Não demorou muito para a discórdia se instalar também dentro desses subgrupos. Com a superpopulação e o ódio entre os grupos, toda a Antártida acabou sendo explorada. Não sem consequências graves.
Segundo consta, a África Unificada do Norte havia feito, secretamente, testes nucleares em uma área de Nova Tebas, então Antártida. A radioatividade do solo fez com que as plantas ali nascidas contivessem uma carga muito grande de radioatividade. Logo, além das doenças, a guerra pela água ou por qualquer outra coisa também levaria ao lançamento de inúmeras bombas atômicas, mas sem extinguir totalmente a raça humana. A guerra durou anos e terminou, obviamente, de maneira trágica. Ao longo da batalha final, seis estrondos foram ouvidos. O velho vidente afirmava que eram as sete trombetas do apocalipse judaico-cristão, crendices populares da época. Uma terça parte do oceano ficou misteriosamente vermelha, navios foram destruídos. Houve um clarão vindo do céu quando o velho anunciava novas pragas que viriam abater o homem. Segundo o mesmo livro guardado pela biblioteca interplanetária, nuvens gigantes de gafanhotos atacaram as tribos que se degladiavam até à morte. O sábio gritava de sua porta: “Naqueles dias, os homens vão correr em busca da morte, mas não saberão onde ela está. Vão querer a morte, mas a morte fugirá deles”.
Um louco, no meio do fronte de batalha, gritava incessantemente “Lance sua foice e ceife. Chegou a hora da colheita, pois a lavoura da terra está madura. Lance a foice e colha os cachos da videira da terra, porque as uvas já estão maduras”. Então o velho gritou: “está realizado”, caindo morto fulminantemente. Segundos depois, os dois últimos homo-sapiens adultos se matavam mutuamente com duas espadas. No mesmo momento, o último bebê era resgatado por um macaco que adentrava a nova floresta Antártida.
Dizem que o posfácio do livro escondido pela biblioteca interplanetária é o seguinte: “Não há monstro que habite dentro de nós. O que há é algo que habita em todos os recônditos cantos do mundo, e essa coisa não tem nome, mas nos obriga a fazer coisas irreversíveis”.
Luigi Ricciardi (São Paulo, Brasil). Nascido Luís Cláudio Ferreira Silva, é graduado em Letras Português-Francês (UEM), mestre em Estudos Literários (UEM) e doutorando em Estudos Literários (UNESP). Foi finalista do prêmio SESC em 2014. Publicou os livros de contos Anacronismo Moderno (2011), Notícias do Submundo (2014) e Criador e Criatura (2015). É fundador do projeto Mutirão Artístico e da revista literária Pluriversos. Atualmente é professor do Bacharelado em Língua Francesa da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Um comentário sobre ldquo;Traços de um retrato, por Luigi Ricciardi”