O amor se manifesta de maneiras misteriosas. Os dias passam lentamente e de forma grosseira, quando sem ela, fazendo com que amar seja uma maldição desesperadora, charmosa.
Meu espírito raivoso chove tempestades quando sente que não pode ter aquilo que deseja. Meus ouvidos fazem greve de surdez, porque pensam que ouvir algo além de sua música é uma tortura sem valor.
Naquela noite, eu rastejei pela cidade procurando uma dose letal de inspiração. Busquei Ginsberg nas vielas escuras. Olhei fixo nos olhos de estranhos, quis que meus olhos relampejassem ao encontrar outros olhos, mas não aconteceu. Fiz da solidão um verso concreto e sujo. Até que finalmente cedi e me rastejei até onde estaria a garota que me embriagaria só com seu olhar cravejado de pólen e inspiração (néctar dos poetas).
Cheguei ao teatro. Eu conseguia ver o aroma doce exalando pelas paredes. A pequena abelha voou em busca de sua flor.
As graves batidas do meu coração ecoavam pela plateia como explosões intensas, vibrantes. A surdez de abstinência abafava meus pensamentos, eu só conseguia ouvir meus próprios momentos, de forma cinza, como a justa medida do tempo. Foi quando, de longe, ouvi uma trovoada. Senti o cheiro de terra molhada e devastada pelo vento. – Ela entrou.
A pianista estava usando a noite como vestido e as estrelas como brincos, ela tinha cabelos longos, liso aos dedos, que acertavam seus ombros como as ondas noturnas quebram nos barcos, rosto fino e acariciado pela perfeição, com lábios cor-de-estrela-cadente, penetrando na atmosfera terrestre, e o talento fértil como a terra. Ela sentou-se em frente ao seu piano, estendeu os braços e deixou que os dedos dançassem sobre as teclas como as árvores dançam ao vento. – Eu me embriaguei. Ela deslizava pelas notas assim como eu deslizo pela poesia. Ela construía melodias assim como eu construo silêncios. Ela acalmava meus caos. Eu lutava contra isso.
As estações não são claras quando estou me drogando com suas melodias, nem o tempo, nem a vida, nem as memórias, nem nada. Eu me deitei sobre seu perfume de mulher e apoiei meu corpo na doce intensidade daquele momento. Fiquei alto o suficiente para pensar em tudo que até aquela hora havia me afligido. Lembrei-me de histórias próprias que nunca havia contado, pessoas de quem ousei me esquecer, areia, balanços. Mastiguei seco para não sentir amargo.
Mesmo alto, consegui sentir o frio de realidade acariciando minhas costas. Saber dessa realidade foi perder minha garota até mesmo na imaginação e, naquele instante, eu percebi que em vida temos pouco, mas fora dela temos nada. Quis congelar o tempo para viver como nada ao lado dela. E o frio visceral foi tomando conta de todos os labirintos do meu corpo, até que chegou aos meus olhos, e eu, como quem cai de uma escada, os abri de forma ríspida como um tiro no vácuo e eles relampejaram ao encontrar dois olhos… os olhos da pianista. Ela sorriu mudando o curso da maré dos meus pensamentos.
Aquele sorriso ofuscou todos os meus sentidos e abençoou minha poesia. – Agora, eu vivia.
Desejei que aquele sorriso fosse a primeira e a última coisa que veria na minha vida. Os relâmpagos pararam quando ela voltou os olhos para seu piano, e eu me fiz uma pergunta: “Como posso sentir mais frio do que este inverno permite’’? Não encontrei uma resposta nem mesmo nos meus sonhos. Então mudei a pergunta, mas essa eu sussurrei em direção a ela: “Posso amar-te no inverno quente mesmo com o vento indiferente”? Só encontrei a resposta nos meus sonhos. Minha alma queria tanto estar com a pianista que, mesmo se eu fechasse os olhos e ignorasse sua presença, as palavras sairiam do meu corpo e cercariam sua silhueta me fazendo sentir cada curva e textura, como um sexto sentido, uma defesa natural do meu corpo, um instinto poético, algo tão natural quanto o voo de uma águia.
Eu era dependente químico daquele amor. Sem ele correndo pelas minhas veias, faltavam-me palavras na mente e cor nos olhos. Eis o meu fim; para sempre não seria.
O frio chegara ao meu coração. Fez bombear neve para todo o meu corpo. – Minhas asas queimaram. Eu caí de alma no chão do mundo.
Já com dores de cabeça, ouvi com dificuldade palmas abafadas por todo o teatro, só consegui bater minhas mãos três desajeitadas vezes. O silêncio grudou nas paredes e as luzes se acenderam.
Eu estava tentando me levantar em todos os sentidos, quando meus olhos tocaram a silhueta fina da minha pianista. Pela primeira vez, eles choveram ao invés de relampejar. Eu vi a noite amanhecendo a cada degrau do palco que ela descia em minha direção. Quando ela estava próxima o suficiente para não conseguir fugir dos meus braços, eu amanheci. Entrelacei-me na noite gélida do seu corpo e ela repousou a cabeça sobre meu coração mais calmo. Tive minha garota pianista em minhas mãos por alguns minutos e ela me teve como uma estrela em sua noite… só por sempre.
Para sempre.


Marcelo Proença Maciel (São Paulo, 1999). Escritor e poeta nascido no dia 21 de março na cidade de Tatuí, SP.


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