No sonho, arranquei as unhas
não sobrou uma
para tatear o seu rosto
com o sabugo identificá-lo
bem; em sua porosidade de pele
Da Morte que assombra
soberana neste corpo-casa
vestido em manto
na cor bizantina, roxa
A minha cidade não está vazia
e se alguém vier me contrariar
decreto a sua loucura lógico-desvairada
porque a minha cidade está aqui
criando e recriando uma citadela
Os soldados enchem sacos
de areia, armam os hospitais,
embriagam-se nos crematórios
A minha cidade não está vazia
Parem de gravar as cenas
o meu coração quer pulsar
quebrem-se as lentes
Os viajantes errantes partem
deitam o corpo-casa-toca
sem despedir-se da minha cidade.
Justo a minha cidade que não
está vazia, os vizinhos em seus lares
rezam sobre seus tapetes
encerradas as igrejas mesquitas templos
as sinagogas, os aquários
transbordando fiéis, peixes,
os hipocampos e os leões de Moscou.
A minha cidade não está vazia
olhem para esta cavidade afundada no peito,
para as árvores que nunca tive.
Nas ruas becos avenidas, ainda
a minha cidade não está vazia
Por onde passou John,
passa a Dançarina Daisy of the Hills,
com as castanholas da avó
batendo nas mãos.
A minha cidade não está vazia,
Ocupada por corpos-casas-sombras
por onde cruzaram
Francisco e Guadalupe,
a ela, a quem sempre apelei
na catedral, ajoelhada
diante dela, tende piedade de nós.
A minha cidade não está vazia,
Não, Senhor dos Ares,
os voos não chegam,
os falcões sacodem os ossos
como medida de ressurreição,
quando tombam do céu,
cai o peso, o pesar.
Dizem que neste século, as sombras
são absolutas, bizantinas e roxas
como uma batata roxa.
A minha cidade não está vazia
porque assim nunca existiu
podem me mostrar imagens, filmes
não acreditarei que
a minha cidade esteja,
de alguma forma: vazia.
Vazios os trens, os bares,
vazio, o Black Cap Café.
Entretanto, a cidade não está vazia,
prometo, afirmo, juro,
faço a cruz em frente ao peito,
estilhaça, o terço de cristal
e declaro em versos:
A minha cidade não está vazia
os corpos são casas,
corpos-casa.
As máquinas pararam,
e os elevadores não sobem nem descem.
Shabbat-shalom quando o sol se põe
Shabbat-shalom quando o sol volta
Shabbat-shalom quando a paz
povoar ruas becos avenidas casas
na minha cidade que não está vazia
iremos capturar os animais fugitivos.
Segunda Terceira Quarta Quinta Sexta Guerra Mundial
Na minha cidade que não está vazia
agora ergueram os Checkpoints
não sei se Charlie, ou Rose
terão o certificado de imunidade
para passar.
Isto tudo vai passar, passar, passar
A minha cidade não está vazia
Você, eu, eles, elas
amantes passageiros
estamos, ficamos, descansamos
não sossegamos
fumigamos os livros,
desinfectamos as roupas e os sapatos
São quatorze dias para a quarentena
a minha cidade não está vazia
escrevo desta cadeira
em outra língua seria menos doloroso
trocar horas e lugar
por tanto adorar, não sei se vou ficar.
KÁTIA BANDEIRA DE MELLO-GERLACH é natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova Iorque, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Vila-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos.