Com curadoria de Kátia Bandeira de Mello-Gerlach, apresentamos uma mostra de quatro poemas [Registro, À maneira de T.S. Eliot (Numa visita a Dachau), Estação adversa e No Père-Lachaise] do escritor mineiro, Ronaldo Cagiano. A fotografia é de David Segarra, na Catalunha.
registro
Nesse tempo de absoluta dissolução
sou contaminado e salvo pela poesia,
antídoto contra
o veneno dos dias
Já não me importam
a falta de paciência do motorista
os corações duros dos auditores da Receita
a avidez usurária dos bancos
a tempestade de ofensas
do parlamento acanalhado
o roubo nas estatais
a queda do PIB
a crise do euro
os disparos de Kim Jong-un
os disparates de Trump
a poligamia de Jacob Zuma
a saliva farisaica dos evangélicos
a transgênica autoproclamação de Guaidó
e outros coveiros da latinoamericanidade
Meus versos não estarão em repouso
como a indolência que caminha
passo a passo
no ritmo de todas as coisas
Vou de mãos dadas
com o verbo
e com sua pá,
lavratura
adestrando
o terreno infértil
à maneira de T.S. Eliot
(numa visita a Dachau)
É o tempo de cimento, da volúpia das batalhas.
Jaime Rocha
O XX foi o mais asqueroso
e cruel dos séculos
com sua matemática selvagem,
impiedosa realidade
da qual nunca nos libertaremos.
Entramos numa nova era?
Quanta náusea já nos causa
o novo milênio
com seus sórdidos guichês.
Mal nasceu,
já entrou em concordata
anunciando seus abismos
escândalos
naufrágios
mortes.
Tempo de corações monolíticos
sufrágio de debilidades
combates pela hegemonia.
Vamos julgar o quê,
quando a Justiça de torniquete
não estanca a dor dos refugiados?
Todo tribunal é débil:
nenhum Nuremberg vai resolver as cicatrizes
pois as mortes não são devolutas
nos fornos criminosos
da História.
A terrível gramática da escuridão
perpetra-nos ainda a conjugação
do pior dos verbos.
Nesse mundo de horror
e decomposição
a poesia é inegociável
diante da dor de amar
um futuro ilegível,
cadáver da indolente espera
que apodrece de passados
espessa e fatal realidade
contaminada de passivos.
Vida esquemática
e tumultuada
a fúria da Insaciável
com seu comércio de misérias
e reiterado cansaço do existir.
Essas décadas de mapas devastados
criaram um outro
mundo,
época de litígios
em que somos reféns do medo,
habitando as vertigens,
essa inóspita e surda enfermaria,
essa
contrária energia da inércia.
Nuremberg, fevereiro de 2013
estação adversa
Pois não. O passado é um país estrangeiro,
mas é esse para sempre o nosso país.
Luís Filipe Castro Mendes
A viagem ao passado
nunca regressa:
na combustão da memória
sinto um cão
chafurdando o íntimo,
adulando um cardume de açoites.
Animal lambendo a ferida,
escória num continente esquivo
onde adubam-se canteiros de melancolia.
As cidades nomeiam
seus mortos
e as efígies de bronze
como tobogãs de insetos,
com seu repertório de excrementos
deixa-os mais vivos
do que nós:
resistem em meio à ausência de bússola
e à fecundação do precário
nesses tempos de ilusões no cio
e colheita de fósseis do nada.
Martelo feroz da existência
é essa música do tempo
tutelando meus dissabores
notas culminantes feito lâminas:
é o fado
ou o fardo da vizinha com besouro na garganta
sibilando salmos em desvario,
acidente
na rota de minhas insônias
quando viajo em galáxias de sangue.
Há um mundo dentro das palavras
(máquina soturna)
que tento desbravar:
esse promontório
que é sedução
ou abismo.
no père-lachaise
Enquanto visito o túmulo
de Sadegh Hedayat,
escritor persa que se suicidou em 1951,
abrindo o gás no nº 37 da Rue Championet,
meus olhos passeiam inquietos;
os sentidos, fugidia embarcação,
procuram no oceanos de jazigos
e sua vegetação de ausências
um último sentido para a vida
e afundo-me no inominado
nessa coleção de oráculos do Nada
aqui, onde a morte nunca envelhece.
Vizinho de Proust,
o autor de “Coruja cega”
divide na tarde parisiense,
despovoada e sombria,
um silêncio tão pesado
quanto o maciço de Damavand.
Vou em busca de um tempo perdido
em meio dessa colônia inerte
onde cresce a linguagem das sombras
e penso em Atma, o cão de Schopenhauer,
e no quanto foi mais feliz
que o resto da Humanidade.
Paris, novembro de 2018
Nascido em Cataguases, Minas Gerais, Ronaldo Cagiano formou-se em Direito e foi bancário da Caixa Econômica Federal, tendo vivido vinte e oito anos em Brasília e dez em São Paulo e está radicado há três em Portugal. Colabora, escrevendo resenhas e artigos em diversos jornais e revistas do Brasil e exterior. Estreou com Palavra engajada (poesia, 1989) e dentre as obras publicadas, destacam-se: Dezembro indigesto (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), Dicionário de pequenas solidões (contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006), Moenda de silêncios (novela juvenil, em parceria com Whisner Fraga, Ed. Dobra, SP, 2012), O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, SP, 2013 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016), publicado em Portugal pela Ed. Gato Bravo, 2018; Observatório do caos (poesia, Ed. Patuá, SP, 2016), Diolindas (romance em coautoria com Eltânia André, Ed. Penalux, SP, 2017) e Os rios de mim (poesia, Ed. Urutau, Pontevedra, Espanha, 2018). Organizou as coletâneas: Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, DF, 2001), Poetas mineiros em Brasília (Varanda Edições, DF, 2002) e Todas as gerações – O conto brasiliense contemporâneo (LGE, Editora, DF, 2006).