um artigo de Mara Vanessa Torres de Menezes Federico & Ana Cristina Meneses de Sousa com colagens de Eugenia Lakeeva
resumo
O objetivo deste estudo é investigar as similaridades e diferenças entre os contos O Retrato, de Nicolai Gogol, e O Espelho, de Machado de Assis, com ênfase na representação da loucura expressa nas respectivas obras. Para reforçar a análise desta pesquisa serão abordados aspectos relevantes na caracterização da literatura fantástica, onde a loucura é associada como um de seus elementos. Se o enlouquecimento tornou-se um estigma, como anuncia o provérbio latino “A quem Deus quer destruir, antes lhe tira o juízo”, o fato também é registrado na literatura como ponte para perceber o inconsciente e desvendar máscaras, influenciando na exploração do irracional, do incompreensível e do lado humano sombrio assinalado na ficção. Esses são os subsídios fornecidos para levantar questões acerca de como a loucura é representada na construção das narrativas e dos protagonistas presentes nos contos supracitados de Gogol e Machado, autores oriundos de tempos, lugares e contextos diferentes.
palavras-chave: loucura; literatura; gogol; machado; literatura fantástica.
abstract
The goal of this study is to investigate the similarities and distinctions between the tale The Portrait, from Nicolai Gogol, and The Mirror, from Machado de Assis, emphasizing the representation of the madness expressed in the respective works. To reinforce the analysis of this research some relevant aspects in the characterization of the fantastic literature will be addressed, where madness is associated with one of its elements. If the maddening became a stigma, as announces the Latin proverb: “Those whom God wishes to destroy, he first makes mad”, the fact is also registered in the literature as a bridge to understand the unconscious mind and to uncover masks, influencing the exploration of the irrational, the incomprehensible and the dark human side that is present in fiction. These are the subsidies provided to raise questions about how the madness is represented in the construction of the narratives and of the protagonists present in the aforementioned tales from Gogol and Machado, authors from different times, places and contexts.
key-words: madness; literature; gogol; machado; fantastic literature.

A veste humana se forjou no ferro,
A forma humana numa ardente forja,
Selou o rosto humano uma fornalha,
E o peito humano sua faminta gorja [1]. William Blake, A imagem divina. In: Canções da Inocência e da Experiência.
Compreender as perspectivas que fortalecem a criação de personagens literários dotados de desrazão, concedendo voz ao irracional, ao inexplicável e à loucura é fundamental para entender a própria sociedade como elemento de significação: seus anseios, medos, limitações, controles e rupturas. Este estudo foca na representação da loucura expressa nos contos O Retrato, do autor russo Nicolai Gogol, e O Espelho, do escritor brasileiro Machado de Assis. Também faz parte do escopo desta pesquisa esboçar um paralelo comparativo entre as duas obras com o intuito de investigar as similaridades e diferenças entre os textos, marcando assim a intertextualidade presente em escritos com uma diferença temporal de quase cinco décadas, além da distinção de lugar e língua.
Com essa finalidade, o presente artigo apoia-se no conceito de intertextualidade defendido por Kristeva: “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (1974, p. 64). Ao concordar com esse raciocínio, a pesquisa está focada no conteúdo das obras em si, e não em comparações sobre influência ou a possível relação existente entre os autores [2].
O processo de escolha e definição do tema foi motivado pelo interesse em investigar as pontes e abismos que ligam duas grandes obras, assim como a capacidade demonstrada pelas narrativas em perceber o inconsciente, o não dito, a desrazão, captando as pistas deixadas pelos autores. Localizar elementos pertencentes à literatura fantástica no processo de construção dos enredos e analisar o espaço ocupado pela temática da loucura é fundamental para compreender a significação das crenças e valores de pensadores e épocas distintos, observando as evoluções e retrocessos na forma como o imaginário coletivo – representado neste artigo pelos contos analisados – reconhece seus medos, delírios e fantasmas.
o retrato de Gogol
Nicolai Vassilievitch Gogol, aclamado escritor russo nascido na Ucrânia [3], publicou aos vinte e seis anos uma coletânea de contos e ensaios intitulada Arabescos (1835), volume em que figura o conto O Retrato. A narrativa do conto traz o ciclo de pesadelo-sonho-pesadelo vivido pelo jovem pintor Tchartkov, culminando com a vigorosa queda que o leva à loucura. Artista iniciante, Tchartkov se vê assolado por inúmeras dívidas e pelo desejo incontrolável que opõe ego e talento, ambição e desprendimento, dinheiro e paciência. Ao passar por uma galeria, ele acaba adquirindo um quadro escondido nos fundos da loja por achar a pintura dotada de extrema vivacidade. Investindo seus últimos trocados nessa compra, Tchartkov se vê sem dinheiro e começa a ser perseguido pelo proprietário do apartamento em que mora. Às voltas com a ameaça iminente de despejo, o jovem pintor tranca-se dentro de seu ateliê e começa a perceber que os olhos pintados do retrato se moviam. Tal fato o atormenta e retira o sono, a ponto de provocar temores febris. Nessas idas e vindas de delírios reais, Tchartkov imagina ter em mãos uma grande quantidade de ducados [4]. Após uma noite de sono convulsiva, o pintor é surpreendido pelo proprietário do apartamento e por um comissário de quarteirão, responsável pelo cumprimento da ordem de pagamento ou despejo. Nesse momento, o jovem nota com espanto que os ducados encontrados em suas alucinações realmente existem e, a partir desse momento, toda a sua vida muda, operando uma completa subversão de valores. “Tudo aquilo que ele havia contemplado até então com olhos de inveja, tudo aquilo que havia admirado de longe, com água na boca, estava agora a seu alcance” (GOGOL, 2012, p.22).
Tchartkov passa a substituir o talento que vinha aprimorando por passeios, festas e toda sorte de esbanjamentos. Começa a produzir retratos em série e abandonar a produção consciente, a reflexão e a dedicação à arte. Os anos transcorreram sem qualquer mudança evolutiva no comportamento do ex-artista, até que um dia, ao ser solicitado a dar seu parecer em relação ao trabalho de um novo pintor, Tchartkov afunda em seu abismo particular. Uma verdadeira obra de arte, feita com dedicação, perseverança, sacrifício, abdicação e talento desponta nas galerias russas, para o espanto geral e declínio completo de Tchartkov. Vencido e consumido pela inveja, o protagonista de Gogol se entrega à loucura regada por estados de alucinação e deterioração física, levando-o à morte.
Por uma coincidência ou pilhéria do destino, Nicolai Gogol morreu como Tchartkov, sua personagem fictícia: mergulhado em profundos arrependimentos e diagnosticado pelos médicos como insano. Como revela Nabokov:
O par de médicos diabolicamente enérgicos que insistiam em tratar Gógol como se ele fosse um simples lunático, para o espanto de seus colegas mais inteligentes mas menos dinâmicos, tencionavam derrotar a insanidade do paciente antes de tentar recuperar qualquer sinal de saúde física que ele ainda tivesse (1994, p.7).
Durante toda a narrativa de O Retrato, o conflito experimentado pela personagem demonstra de que forma o tema da loucura é representado na obra, concedendo-lhe o lugar da exclusão, da punição, da marginalidade. Tais elementos fortalecem a ideia dos limites instituídos pela cultura ocidental, em que a exclusão e a proibição fazem parte de uma estrutura fundamental (MACHADO, 2005). Ao destacar a queda do homem pela loucura, Nicolai Gogol, cristão ortodoxo [5], associa o destino da personagem pecadora de O Retrato ao despenhadeiro da insanidade. Assim como a personagem Dorian Gray, criada pelo escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde, o protagonista de Gogol deixa-se consumir pela febril mistura de ego, idolatria e ambição, cujo único lugar reservado a tais “impulsos diabólicos” seria a perda total do precioso bem da sanidade, das decisões voluntárias e da vontade própria ou, para usar uma expressão inspirada na obra História da Loucura [6], condenando-o a um “espaço de murmúrios” (MACHADO, 2005, p.37).

o espelho de Machado
O ano era 1882. Em terras brasileiras, Joaquim Maria Machado de Assis publicava no jornal Gazeta de Notícias o conto O Espelho [7] – Esboço de uma nova teoria da alma humana. Posteriormente, a obra foi vinculada ao livro Papéis Avulsos, publicado no mesmo ano. O texto narra a fantástica experiência vivenciada por Jacobina, um jovem pobre que, aos vinte e cinco anos, é nomeado alferes da guarda nacional. Tal acontecimento desperta os mais exagerados sentimentos em seus familiares, e eles começam a dedicar ao mais novo alferes toda sorte de elogios e honras.
O posto de Jacobina acende o ímpeto de hospitalidade de uma tia, que o convida para passar uns dias em seu sítio. Lá chegando, Jacobina deixa de ser tratado pelo nome e passa a ser chamado de “senhor alferes”, vocativo estendido também aos escravos da casa. “Eu pedia-lhe que me chamasse de Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o ‘senhor alferes’” (ASSIS, 2007, p.157).
As manifestações honrosas legaram ao jovem alferes o melhor lugar na mesa, o primeiro prato a ser servido e a joia preciosa da casa: um grande espelho, cercado pelas pompas de um suposto passado imperial e resquícios de ouro. Diante de tanta opulência, “o alferes eliminou o homem” (ASSIS, 2007, p.157). Jacobina passou a sentir dentro do peito que não existia mais nada além de seu status de alferes. Consumido pela vaidade, o jovem começa a descortinar um vício profundo, nefasto e oculto em sua alma. No entanto, as circunstâncias mudam quando uma filha da entusiasmada tia passa mal, impelindo a anfitriã a deixar o sítio e o sobrinho alferes para trás. Sozinho com os criados, o rapaz não consegue conter o tédio e a insatisfação até que, poucos dias depois, é abandonado à própria sorte no sítio, já que os escravos de sua tia o enganam e fogem.
Na mais profunda solidão, sem nenhuma plateia para inflar seu ego, a intensidade de outrora se transforma em apatia, mecanicidade repetitiva, ponteiros de relógios que morrem a cada batida [8]. Essa letargia começa a provocar-lhe alucinações, delírios, confusões mentais e desespero. O mal estar só é apaziguado com a aceitação da loucura, fato que se dá quando Jacobina se veste de alferes, aceita que sua nova identidade é a que lhe foi imposta e atravessa mais seis dias de isolamento com essa sensação de poder, fitando-se fardado diante do grande e tradicional espelho depositado em seu quarto.
Essa experiência é lembrada pelo protagonista na idade adulta, no meio de um debate sobre assuntos metafísicos com amigos íntimos. Em sua explanação, Jacobina separa a alma humana em alma interior e alma exterior; esta última diz respeito ao que consome, apaixona, obceca o indivíduo. Ela é de fora para dentro. Já a alma interior é de dentro para fora, personificando a essência. Com este conto, Machado de Assis, aos quarenta e três anos, desenvolve mais uma personagem cuja ótica está baseada no que se é, no que se pensa que é e no que os outros pensam que se é. Esse raciocínio pode ser percebido em outras obras machadianas, característica que faz do autor um observador arguto da sociedade. “Machado podia dar conta dos problemas porque tinha deles a visão por dentro, assim como a linguagem descolada dos compromissos de classe e suficientemente distante da sedução da corte” (GARBUGLIO, 2008, p.387).
Assim como Lady Macbeth, personagem transformada em lenda pelo dramaturgo e escritor inglês William Shakespeare, Jacobina permitiu que o o consumisse, alterasse sua identidade, forjasse sua alma. O jovem alferes apaixonou-se pelo poder [9] (FOUCAULT, 1977).
a loucura como elemento do fantástico
Os contos analisados fazem referência a acontecimentos sobrenaturais no qual os protagonistas vagam entre o real e o fantástico. Todorov fala que “o fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (1981, p.16). Um texto fantástico, segundo Todorov, deve provocar uma vacilação do leitor e do herói diante de um acontecimento incomum, buscando não ser poético ou alegórico (1981, p.19). Nas palavras do autor, o estranhamento, a incompreensão e a falta de explicação que justifique o fato são essenciais na narrativa fantástica, que se apoia na incerteza (TODOROV, 1981, p.19).
Cabe destacar que este artigo não se propõe a entrar em discussões sobre a definição ou não do fantástico como gênero literário, de forma que, opta-se por elencar diretamente as características e elementos que abarcam os contos estudados, comparando-os com a forma na qual a loucura é representada na literatura fantástica. Tendo em vista que: “A literatura enuncia o que apenas ela pode enunciar. Quando o crítico tiver dito tudo sobre um texto literário, não terá ainda dito nada, pois a própria definição da literatura implica que não se possa falar dela” (TODOROV, 2008, p.27). Reforçando esse pensamento, vale lembrar que “metade da arte narrativa está em evitar explicações” (BENJAMIN, 1994, p.203).
O fantástico está relacionado ao universo do inexplicável e da ambiguidade e, não raro, o elemento sobrenatural traz em si o germe da malignidade, do horror, da monstruosidade (FURTADO, 1980, p.22). O medo, instinto básico do ser humano, passa a ocupar papel de destaque em narrativas sobrenaturais, tendo em vista que “o único teste para o verdadeiro horror é simplesmente este: se suscita ou não no leitor um sentimento de profunda apreensão, e de contato com esferas diferentes e forças desconhecidas” (LOVECRAFT, 1987, p.5-6).
A loucura, por ser fonte de incompreensão e inacessibilidade, sempre foi considerada tabu social. Dona de uma linguagem própria, a loucura nos tira dessa “interioridade confortável em que nos comunicamos e nos reconhecemos” (PELBART, 2002, p.292). O enlouquecimento nos deixa à deriva, obrigando-nos ao ato de “demolição e fabricação de si” (PELBART, 2002, p.294). Se nos tira do lugar comum e altera o sistema de controle, precisa ser regulado, racionado, proibido. “O que é a existência humana se ela é ameaçada por essa alguma coisa que seria a loucura, e se ela não pode alcançar uma espécie de experiência suprema senão através da loucura?” (FOUCAULT, 2010, p.236).
A partir do século XIX, o homem iluminista começa a dar lugar à outra forma de pensamento, culminando no surgimento de uma visão Romântica. “O homem do Iluminismo vai encontrar, no fantástico, uma maneira de tratar das questões deixadas de lado pelo pensamento racionalista, penetrando no mais profundo das percepções e dos sentimentos” (SILVA, 2013, p.2). Esse novo momento histórico e social abriu lugar para a temática da instabilidade mental em publicações literárias. Os contos de E.T.A. Hoffmann são fundamentais nesse processo de transição.
Com a chegada dos contos de Hoffmann à França, a literatura fantástica conquista novo fôlego, com uma nova perspectiva de visão do mundo e, especialmente, do indivíduo. As raízes na literatura gótica inglesa começam a ser deixadas de lado e os castelos escuros, vampiros, fantasmas e monstros passam a ceder lugar às alucinações provocadas por drogas e distúrbios mentais (SILVA, 2013, p.3).
Diante dessa nova perspectiva, o fantástico passa a estar presente dentro do próprio indivíduo: os medos, delírios, loucuras, pesadelos e perturbações não estão mais relacionados apenas com o sobrenatural, mas sim como manifestações humanas (SILVA, 2013). O fantástico começa a fazer parte do homem, olhando-o e refletindo-o de dentro para fora, nascendo e renascendo em sua própria mente. É nessa emanação subterrânea que o desequilíbrio mental surge como a voz de quem já não suporta mais renegar as façanhas do inconsciente.
A inserção da loucura na literatura fantástica vai retomar o tema da inadequação do indivíduo, que se liga diretamente ao contexto iluminista em que nasce essa literatura, uma vez que a razão e a ciência provavam-se insuficientes para dar conta de todos os questionamentos humanos, e já não se dava mais crédito às explicações místicas e religiosas. Este universo do homem que se vê sozinho, abandonado a sua própria sorte e sem ter em que acreditar, é o universo que a literatura fantástica assume e passa a explorar (SILVA, 2013, p.3).
Tendo em vista que a loucura é o ponto intocável e incontrolável da alma humana, tornando-a lugar do desconhecido, desponta no universo literário do século XIX a possibilidade de especulações e questionamentos da lógica social vigente, onde se observa brotar, profunda e implicitamente nas palavras de grandes poetas e autores, o risco de tornar-se louco (FOUCAULT, 2010). Tal risco impulsiona a busca por lugares que não são mais seguros e confortáveis, adequados e razoáveis. Muitos são os exemplos de escritores e poetas que adentraram na temática da loucura e, de diferentes maneiras, abandonaram suas cômodas zonas de aceitação. Dentre eles figuram nomes como Edgar Allan Poe, Howard Lovecraft, Gérard de Nerval, Ivan Turgueniev, Robert Louis Stevenson, E.T.A Hoffmann, Nicolai Gogol e, posteriormente, Machado de Assis.

afinidades e contradições de almas esfomeadas
Separados por quase cinco décadas, os contos O Retrato e O Espelho, de Gogol e Machado, respectivamente, provocam o leitor com personagens que atravessam desordens íntimas. Ambos os contos trazem no enredo protagonistas jovens, pobres, ambiciosos e que enxergam na vaidade, na satisfação interna e no dinheiro pontes para alcançar a felicidade. Tchartkov (O Retrato) e Jacobina (O Espelho) atravessam um processo de mutação de identidade, no qual circunstâncias, pessoas e objetos fúteis reproduzem a ideia de nobreza, bens materiais, aristocracia e paixão pelo poder. A ambição e o delírio se unem em um êxtase febril, fazendo com que os jovens tenham suas identidades usurpadas por algo inexplicavelmente mais forte e incontrolável.
Em O Retrato, o pintor Tchartkov perde os rumos do próprio talento e valores ao se deparar com uma grande soma em dinheiro; a quantia é resultado de um delírio noturno que o faz mergulhar no mais profundo de sua sanidade. Com a nova situação financeira, aproximam-se as primeiras dúvidas e mudanças. “Eis o que lhe ditava a razão, mas no fundo dele mesmo erguia-se uma voz mais poderosa. E, quando tornou a lançar um olhar sobre o monte de ouro, seus vinte e dois anos, sua ardente juventude fizeram tilintar uma outra linguagem” (GOGOL, 2012, p.22).
O mesmo sentimento tido como irracional toma conta do jovem alferes Jacobina.
(…) Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. (ASSIS, 2007, p.158).
Nas duas obras literárias, as personagens abandonaram seus propósitos e personalidades para adentrar em outro universo; ambas deixaram a outra alma esfomeada, delirante, intempestiva assumir o controle de seus corpos e mentes. Os vícios ocultos passaram a habitar a pele dos protagonistas, permitindo que suas sombras ocupassem o lugar da vida real. Motivados por uma ambição faminta, o pintor de Gogol e o alferes de Machado começaram a descobrir a imperatividade de necessidades que antes não conheciam. “Comprou perfumes, cremes, um binóculo de bolso muito caro com o qual não tinha o que fazer e muitas gravatas das quais não tinha necessidade” (GOGOL, 2012, p.22). Jacobina, por sua vez, sentia necessidade de elogios, constantes favores prestados e caprichos atendidos, colocando a patente em primeiro plano, dispersando a antiga identidade no ar e no passado (ASSIS, 2007, p.158).
Outra conexão intertextual entre as duas obras está relacionada com o vocabulário e as figuras utilizadas: ambos passam por experiências sobrenaturais enfrentando o período noturno, a solidão, o pesadelo e a instabilidade mental. Nos dois contos, há a sinalização do ato de acordar, levantar, observar o dia seguinte, funcionando como prova de que tudo pode ser tão real quanto à própria condição da loucura e do sobrenatural. “Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono, a consciência do meu ser novo e único, – porque a alma interior perdia ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar…” (ASSIS, 2007, p.160). Depois de uma noite turbulenta com as alucinações provocadas pelo retrato, o pintor “acordou muito tarde, a cabeça pesada, vítima daquele mal-estar que experimentamos num quarto esfumaçado” (GOGOL, 2012, p.17).
Referências à lua e à metamorfose provocada pelo período noturno podem ser encontradas nos dois contos, como quando Jacobina fala da noite como “sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga” (ASSIS, 2007, p.159) e Tchartkov questiona a realidade/irrealidade dos acontecimentos associando possíveis alucinações à claridade lunar, “esta mensageira do delírio que imprime em tudo um aspecto irreal”(GOGOL, 2012, p.13). O campo do delírio e do onírico é utilizado como travessia para o furacão de desequilíbrio em que as personagens submergem. A ironia, o desmascaramento da superficialidade de homens que se deixaram devorar pela sociedade e pelas regras de seu tempo, o mistério do irracional e a migração gradativa da sanidade para a loucura são elementos de afinidade entre as duas obras. Tanto o alferes de Machado quanto o pintor de Gogol perderam o pulsar humano do sangue nas veias, deixando-se cegar pelo dinheiro, ganância e ambição. Ao mesmo tempo em que a loucura vira uma forma de descontrole, de perca da humanidade, ela revela os significados enterrados sob a forma de máscaras e exclusões. A loucura revela a verdade por trás do que se pretende dissimular, já que “o louco é um profeta ingênuo, que conta a verdade sem o saber”. (FOUCAULT, 2010, p.240).
Com a mutação drástica em suas personalidades, os humanos extraordinariamente monstros deixam feridas abertas, fraturas expostas em nossa natureza social e individual. A ganância de Tchartkov matou o artista talentoso que existia dentro dele, já que “o ouro tornou-se sua paixão, seu ideal, seu terror, sua volúpia, seu objetivo” (GOGOL, 2012, p.35). O ego de Jacobina rasgou sua humanidade, pois “as dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes” (ASSIS, 2007, p.158).
Fazendo da escrita a imitação de uma bomba (ARTIÈRES, 2009), Machado de Assis e Nicolai Gogol lançaram granadas contendo personagens possuídos pela loucura que atormenta e revela; a desrazão que grita em uma linguagem absolutamente sua; a linguagem subterrânea, murmurada e silenciada (FOUCAULT, 2005).
A loucura como revelação acontece no epílogo das obras, quando os protagonistas encaram seus próprios demônios e sentem o desmoronamento. Em O Retrato, o já velho e indiferente Tchartkov presencia o lançamento de uma obra de arte divina, imperatriz de todos os atributos que um artista no mais alto grau de evolução pode alcançar. Nesse momento, o homem rico e fracassado pintor assume o lugar de Tchartkov; a inveja desmedida, o remorso, a fúria e o descontrole o carregam direto para a loucura.
Logo uma febre maligna juntou-se à tísica galopante para, em três dias, fazer dele uma sombra. Os sintomas de uma demência incurável vieram juntar-se a estes males. Por um certo tempo, muitas pessoas não chegaram a percebê-lo. Ele acreditava rever os olhos esquecidos após tanto tempo, os olhos vivos do extravagante retrato (GOGOL, 2012, p.41).
Transcorridos tantos anos, os olhos do retrato voltam a perseguir Tchartkov, demonstrando que a loucura, como elemento sobrenatural, sempre esteve contida no interior da personagem. A função mágica e inexplicável do fantástico dá lugar ao tenebroso da mente humana. Reclusa, dominada pela mão do saber médico e pelos discursos de autoridade, a loucura é vista pela ótica da razão, “ligando-se a um sistema de operações médicas relacionadas aos sintomas e às causas” (MACHADO, 2005, p.15).
No entanto, apesar da força do sistema de medicalização, a loucura rompe o dique e leva Tchartkov embora. “O médico que tentara curá-lo e que conhecia vagamente sua estranha história, procurava em vão que tipo de ligação secreta tais alucinações poderiam ter com a vida de seu paciente” (GOGOL, 2012, p.41).
No enredo de O Espelho, Jacobina permitiu que o alferes consumisse o seu coração humano, aceitando seus delírios como tática de sobrevivência; para não sucumbir, ele permitiu-se levar pela loucura. No momento em que, anos mais tarde, relata sua história aos amigos e eles insinuam que a experiência do então jovem alferes era de enlouquecer (ASSIS, 2007), ele afirma que o fato de olhar para o espelho, encontrar-se em dois – seu reflexo e seu corpo físico – e vestir a farda de alferes foi o que o salvou. Enquanto fitava o espelho despido da vestimenta, Jacobina só via sombras, figuras esfumadas, difusas. Ao utilizá-la:
Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me duas, três horas, despia-me outra vez. Com esse regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir. (ASSIS, 2007, p.161-2).
Dessa forma, Jacobina permitiu que sua alma exterior, suas alucinações e instabilidades desnudassem o que carregava por dentro. Entrando nas profundezas de sua desordem mental, ele salvou a si mesmo.
O ponto de distanciamento entre os dois contos está relacionado com a perspectiva mística, religiosa, beirando à experiência de pecado e redenção levantada por Gogol em O Retrato. As fortes influências cristãs oriundas da criação materna fincaram bandeira na narrativa da obra, associando inveja, mesquinharia, ambição desmedida por dinheiro, status, reconhecimento social e egolatria ao canto do demônio, ou seja, ao pecado. “A glória não pode trazer alegria a quem a roubou: ela só faz palpitar os espíritos dignos dela” (GOGOL, 2012, p.35).
Segundo o pensamento expresso por Gogol em seu conto, o talento, o sacrifício árduo e o anonimato desinteressado são qualidades fundamentais para a elevação do homem enquanto ser humano e espírito; ao fugir disso, só lhe resta à loucura e a miséria de espírito, tendo em vista que a vida mundana aniquila o lugar divino.
Esse raciocínio não é percebido na obra de Machado de Assis, cujo enfoque elenca a condição humana como fruto da relação do indivíduo consigo mesmo e com as exigências da sociedade que o mantém.
Como escritor, ele enfrentava a violência da história através de uma ironia peculiar, capaz de mostrar o avesso dos sistemas, dos esquemas e das supostamente boas intenções do ser humano. Como cidadão e pensador, ele se mostrava coerente com a postura do escritor e assumia sempre uma postura não-dogmática, portanto uma posição cética perante a vida, a política e a condição humana (KRAUSE, 2008, p.94-5).
Dessa forma, Jacobina não é um pecador arrependido, mas um homem entregue aos caprichos e limitações de sua condição humana e de sua alma exterior, bem como de tudo que a domina. O alferes lembra que a alma exterior pode ser um fluido, objetos, bens, situações (ASSIS, 2007), alimentando todas as vaidades e desejos humanos.
Assim, a ponte que separa as duas obras está relacionada com a forma de representação da loucura: em Gogol, como uma punição divina pelos pecados cometidos, e em Machado, como uma busca de recriação do homem enquanto ser social, questionando a ordem estabelecida.
rascunhos finais
Ao lado da intertextualidade existente entre O Retrato e O Espelho, obras separadas por quase cinquenta anos, há a paciência, engenhosidade, eloquência e imaginação de dois escritores atemporais. Representada pelo sobrenatural como terror e pânico, a loucura é trabalhada nos contos como uma linha que une e separa desejos, fixações, máscaras e revelações do homem. Como ponto de inacessibilidade e desconhecimento, a loucura presente nas personagens concede voz ao sussurro que, por ser incompatível com o sistema de dominação e vigilância, é adequado e controlado; fato que, não raro, continua tomando conta da literatura e de outras manifestações artísticas. Por isso, “é normal que os escritores encontrem seu duplo no louco ou em um fantasma. Por trás de todo escritor esconde-se a sombra do louco que o sustenta, o domina e o recobre” (FOUCAULT, 2010, p.243).
O paralelo realizado entre as obras do russo Nicolai Gogol e do brasileiro Machado de Assis possibilitou a este artigo identificar, analisar e compreender as similaridades e diferenças existentes em duas narrativas oriundas de circunstâncias, momentos e espaços distintos, destacando a representação da loucura na voz dos protagonistas. A literatura fantástica pode ser construída a partir da ossatura do sobrenatural, mas ela é capaz de reunir as experiências formadoras de pavores internos à mente humana, desequilíbrios e impressões subjetivas, tendências inconscientes; congregação que ostenta fatores sociais, institucionais e regulatórios.
Ambas as narrativas abrem caminho para a rota do fantástico, do insólito, da desordem mental, mas diferenciam-se no que diz respeito à representação da loucura, vista pelo escritor russo como punição e pelo autor brasileiro como resultado das ações do homem reverberadas na sociedade em que vive. Mesmo com a diferença de representação da loucura vigente nas duas obras, ambos os autores são reconhecidos em seus países de origem, com extensão além das fronteiras, como mentes capazes de demonstrar a superficialidade de sociedades vulgares, baseada em simulacros e modos de dominação e aprisionamento coletivo e individual. Diante disso, as formas de representação da insanidade, aliadas à máquina que as constrói, encontram suporte além do imaginário social ou dos prontuários médicos, perdurando na arte e nas palavras literárias, eternizadas, sentidas, com ímpeto suficiente para continuar forçando passagem, transgredindo, subvertendo limites e ampliando pensamentos.
[1] “The Human Dress, is forged iron, The Human Form, a fiery Forge. The Human Face, a Furnace seal’d. The Human Heart, its hungry Gorge”, tradução de Renato Suttana.
[2] Vale destacar que Machado de Assis foi leitor de Gogol, fazendo referência ao autor na crônica do dia 26 de junho de 1888, publicada no jornal Gazeta de Notícias. Na ocasião, Machado faz referência ao romance Almas Mortas, destacando o autor russo como “célebre Gogol” (ASSIS, Machado de. Crônica 13. In: GLEDSON, John (Org). Bons dias! 3.ed., Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.139-142.). Para mais informações sobre a presença das obras de Nicolai Gogol na biblioteca de Machado, ver artigo Gogol, Matriz de Quincas Borba, de Ana Cláudia Suriani da Silva.
[3] Gogol nasceu na cidade de Sorochíntzi, província de Poltava, antiga Pequena Rússia (Ucrânia). Informação de: NABOKOV, Vladimir. Nicolai Gógol: uma biografia. Tradução do original em inglês de Terezinha Barreti Mascarenhas. São Paulo: Ars Poetica, 1994.
[4] Moedas de ouro ou prata utilizadas em vários países.
[5] Nicolai Gogol parecia acreditar mais na existência do inferno do que na possibilidade do paraíso. Esse pavor da casa demoníaca o atormentou durante toda a vida. (NABOKOV, 1994).
[6] História da Loucura é um estudo minucioso realizado pelo estudioso e pesquisador francês Michel Foucault, cuja temática envolve as práticas, instituições, ideias, arte, sociedade e literatura referentes à loucura na história ocidental.
[7] O Espelho foi publicado no jornal Gazeta de Notícias no dia 8 de setembro de 1882.
[8] Nesse fragmento, Machado faz uma referência sensacional ao poema ‘The old clock on the stair’ (1845), do poeta americano Henry Wadsworth Longfellow. Essa citação é lembrada por John Gledson no livro 50 contos de Machado de Assis, Companhia das Letras, São Paulo, 2007, o qual seleciona, organiza e introduz.
[9] Referência ao prefácio escrito por Michel Foucault para a edição americana do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Nova York, Viking Press, 1977, cuja potência da frase “Não se apaixone pelo poder” atravessa décadas.
[10] Nabokov revela em sua biografia que Gogol foi fortemente influenciado pela histeria religiosa da mãe, uma mulher de tradições ortodoxas e supersticiosas. Ver NABOKOK, Vladmir. Nicolai Gogol: uma biografia. Tradução de Terezinha Barretti Mascarenhas. São Paulo: Ars Poetica, 1994.
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Mara Vanessa Torres de Menezes Federico é jornalista, escritora, revisora e pesquisadora. Graduada em Comunicação Social – habilitação Jornalismo pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina (CEUT) e Especialista em História, Cultura e Sociedade pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Colunista na Agência Biblioo, escreve sobre tecnologia, arte, literatura, ciência e cultura chinesa.
Ana Cristina Meneses de Sousa é Professora Adjunta da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Doutora em História na linha de pesquisa de Cultura e Memória pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Orienta pesquisas na área de História, Cultura, Literatura e Intelectuais.