O projeto Álbum de Família consiste em uma série de textos ficcionais curtos tendo como ponto de partida algumas fotografias antigas dos parentes do autor. É também sua primeira incursão na exploração artística da memória, trabalhando com seu tensionamento até a total descaracterização como lembrança ou história. Os próximos passos ainda estão sendo estudados, mas, com esses pequenos textos, definitivamente há um começo. A divulgação da série é feita a cada duas semanas, por e-mail. Em paralelo e suplementarmente, um blog e um página de facebook foram criados1. Para esta edição especial da Revista Philos, foram separadas duas fotos e seus respectivos textos.
flor de goiaba
Não devia nada de crescer. Contrair o tempo, fazer caber uma década num segundo, capturar esse segundo com uma rede de caçar borboletas e com a ajuda de uma pinça delicada recolher o espécime e guardar numa caixinha de cerâmica revestida de seda. Selar bem. Preparar um papiro cru e sem palimpsesto. Com um pincel de pelo de lince e tinta da china pormenorizar o instante e classificá-lo com o rigor previsto nos manuais de taxonomia avançada. Enrolar o papiro. Guardá-lo com a caixinha num cofre de banco de uma cidadezinha no interior que não apareça nos mapas escolares. Ah, menina! Esse pé de goiaba é a nossa desgraça. Não há força de mãe que o impeça de crescer. Não há força de mãe que te impeça de trepar. Que teu pai não queira ver, que tua irmã só olhe para o próprio futuro. Um dia pego um machado e acabo com tudo. Não devia nada de crescer.
technicolor
Não tinha pressa. A vera é que tinha, mas não podia assim dizer que o motivo não era lá grandes coisas. Vai que o tirassem pra capiau deslumbrado e todo o Bar do Heitor desse pra rir de si. Quer enganar quem? Nunca gostou de futebol e agora todo afoito pra ver o Brasil contra a Tchecoslováquia. Tchecosloquê? Tchecoslováquia, Luizinho, um país dos comunistas. Comusquê? Um dia você entende. Como entenderia logo mais que a euforia do pai não era com o Pelé, o Gerson, o Jairzinho; era com as cores. No Bar do Heitor tinha a primeira tevê em cores do Cambuci e Mario queria era ver com os próprios olhos. E dá pra ver sem ser com os olhos, pai? Xiiiu. Ver o mundo colorido como mundo. Por acaso era com a Copa. Não bem acaso. O caso é que não tinha como ser diferente. O que servia pra mostrar em cores que não fosse o escrete canarinho? Os comunistas da Tchecoslováquia que não iam passar na tevê, nem os do Goiás. Tem comunista no Goiás? Masca chicletes, Luizinho, que é pra falar menos. Pra pensar menos. Pra frente, Brasil. A rua tá cheia de gente, cheia de gente pra ver o Brasil. Pra frente, Brasil. Pra ver o Brasil contra os comunistas da Tchecoslováquia, do Goiás. É tudo tão bonito. O povo, a tevê no Bar do Heitor. A bola, os gols. Tudo ao vivo. A vida assim mesmo sem precisar pintar com technicolor.
Lucas Verzola (São Paulo, Brasil). É autor de São Paulo Depois de Horas (Patuá, 2014), Em Conflito com a Lei (Reformatório, 2016) e A Última Cabra (Reformatório, no prelo). É editor e um dos fundadores da Revista Lavoura.